29 ago 2009

Literaturas do Anjo Cinzento

As crenças no sobrenatural terminam sempre sendo abolidas pelas gestas racionalistas. No entanto, como observa Rafael Llppis, os mitos regressam do braço da arte romântica. Mas já não como puras crenças que eram antes, mas como estética. Mesmo que negados pela razão, os fantasmas se resistem a morrer.
Mas devem abandonar suas pretensões de verdade e se vêem obrigadas a se expressar num plano artístico onde reconhecem de antemão a sua condição de fantástica. Assim, o sentimento negado como crença pela razão nega, por sua vez, a razão. Mas já sendo ate, convertido no eco de algo que já não é, o mito perde força e vai se esgotando. Até aqui, Llopis. Talvez faltasse apenas um modesto condimento: a arte romântica estabelece um vínculo inexorável entre o criador e sua obra. Deste modo o artista acredita redondamente nos seus monstros ou, ao menos – como pedia Coleridge – suspende sua incredulidade. Os analistas dos mitos de Flores aplicam estes critérios para explicar a lenda do Anjo Cinzento. É possível que os vizinhos tenham acreditado alguma vez na existência certa deste miserável agente celestial. Os Refutadores de Lendas se encarregaram de desalojar a superstição. E nós recebemos – sombra de um suspiro – os restos incompletos de uma literatura de bairro que insistiu no Anjo apesar de tudo.
Onde localizar os Homens Sensíveis nestes vaivens do pensamento e da paixão? Não é fácil de dizer. Manuel Mandeb e seus amigos não eram ingênuos em absoluto. Suas ilusões não terminavam na desilusão, senão mais bem começavam por aí. Pelo que sabemos, quase nunca falavam do Anjo Cinzento.
Também não chegou até nós a constância de nenhuma polêmica acerca do assunto. Em certo modo, isto faz suspeitar uma certeza. Quem não questiona sobre a existência de algo é porque está seguro ao respeito. Claro que ignoramos se tal certeza afirmava ou negava o Anjo de Flores. Curiosamente, muito perto do silêncio dos Homens Sensíveis rendeu infinidade de textos, obra de artistas da vizinhança, nos que se contava toda classe de estórias nas que aparecia o anjo. Dela se extraiu toda a informação que possuímos agora sobre esta figura desbotada, a mais importante, mas também a mais longínqua nos relatos de Flores.
Repassemos alguns aspectos do Anjo Cinzento nos que coincide a maioria dos autores consultados. O Anjo era invisível. Sabe-se, no entanto, que usava uma túnica cinzenta e que suas asas estavam um pouco sujas. Seus poderes eram escassos, como expressa uma antiga balada: “O que pode oferecer um anjo que não seja fantasia ou algum humilde milagre de quarta categoria”. Acredita-se que havia sido castigado por alguma transgressão. Seu pecado deve ter sido também humilde, pois não havia nada satânico em seus procedimentos. Era serviçal, mas todos procuravam evitar sua ajuda. Por alguma razão, o Anjo acreditava que a melancolia e o desencontro eram coisas desejáveis e então recompensava seus enteados com tristezas permanentes. Já se disse que odiava os automobilistas e por isso interferia no funcionamento dos semáforos. Sempre gostou das canções tristes. Às vezes ditava composições ao músico Ives Castagnino. As loiras da rua Caracas já ouviram serenatas angelicais que pareciam surgir da sombra ou do nada. Participava em todas as brincadeiras do bairro. O russo Salzman afirmava que a probabilidade de fazer sete no jogo de dados era duas vezes maior em Flores do que em qualquer outro lugar. Carlos Menéndez, um conhecido malandro da rua Bolívia, jurou que em dez anos de atividade em toda partida de naipes do bairro, jamais conseguiu um sete de ouros, carta que recebia com razoável freqüência em Caseros ou em Palermo. 
Repartia sonhos desde o anoitecer até a alvorada, levando uma cesta de padeiro. Não lhe estava permitido sair de Flores. Os duendes, fantasmas e demônios de outros rumos caçoavam dele.
Sem pretensão de antologia, trazemos ao conhecimento público alguns textos e dados biográficos dos escritores obscuros que se ocuparam do Anjo Cinzento
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RICARDO PEREZ BRUNETTO: 
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Manuel Mandeb costumava se jactar de ter esquecido a teoria da relatividade, quando na verdade jamais a havia conhecido. Nesse mesmo sentido, Pérez Brunetto, com fingida amargura, dizia que era um escritor esquecido: jamais alcançou semelhante posição. Pese a tudo isso, alguns dos seus contos impressionaram suas primas a limites que o próprio artista tratou de ocultar.
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CARLOS Y AMELIA: 
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O primeiro coração encontrou-se pintado na parede frente à sua casa. Em seu interior, entre adornos, lia-se “Carlos e Amélia”. Mesmo que se chamasse Carlos, ele não se deu por aludido, pois não conhecia nenhuma Amélia. O segundo o impressionou um pouco mais. Estava desenhado a dedo limpo na vitrine do bar “Tio Friz”. Ao terceiro coração compreendeu que o assunto era com ele. Apareceu de repente ao descolar do armário uma foto de Laura Hidalgo. Depois começou a encontrar corações por todas partes: no banheiro do estádio de Vélez, detrás do almanaque de uma tinturaria, num velho caderno e na árvore da praça, a uma altura impraticável para qualquer apaixonado.
Não custou muito em suspeitar algo prodigioso. Nenhum dos seus amigos tinha a astúcia nem o afinco para uma brincadeira semelhante. O último coração se apresentou numa pipa que acabavam de arriar e que carecia de qualquer inscrição ao ser levantada. Havia sido desenhado no céu.
Dias mais tarde, Carlos conheceu a Amélia. Era linda, mas triste e fria. Economizaremos trâmites literários se dizemos que se apaixonou por ela. Ficou sabendo onde morava, fingiu encontros casuais, tratou de interessá-la de cem diferentes maneiras. Finalmente lhe confessou seu amor, suplicou, se humilhou, mas a mulher não prestou atenção. Não deve haver existido jamais uma rejeição tão inapelável como aquela.
Depois disso já não apareceram novos corações. Carlos não viu Amélia nunca mais, mas por sua culpa envelheceu sem amores. Um dia soube por uma bruxa que o Anjo Cinzento prepara esses acontecimentos para que alguns privilegiados vivam a rara experiência do amor impossível. E uma tarde, passeando em frente à casa abandonada da mulher, descobriu apagada, a sombra de um coração pintado sob a janela. Entre adornos lia-se “Amélia e Ernesto”



RUBEN DI LEO: 
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Centro avente do clube Empalme San Vicente. Não era literato, mas escreveu um extenso volume titulado “Minhas Melhores Jogadas”, no que relatava em estilo insufrível mais de mil e quinhentas ações futebolísticas nas que aparece como protagonista.
Uma delas é de certo interesse para nós: Jogada 304 Perrone chutou o escanteio desde a esquerda. Perdiamos um a zero e faltavam dois minutos. O tiro saiu alto demais. Eu estava na área, mas nem pensei em pular. De repente, senti que umas mãos ardentes me pegavam da cintura e me elevavam pelo ar. Assim alcancei uma altura fenomenal, quase um metro por cima dos defensores. Misteriosamente, minha cabeça bateu na bola. As mãos me soltaram e caí desparramado. Achei que tinha escutado o rumor de umas asas, mas foi muito mais forte o grito de gol da arquibancada. Desde esse dia, quando há escanteio, procuro chutar eu.
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IVES CASTAGNINO: 
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O mais famoso dos músicos de Flores e de Palermo. A valsa que transcreveremos foi ditada, segundo dizem, pelo próprio Anjo que além disso costumava cantá-la ao fazer cada noite a entrega domiciliar de sonhos:
O reparto de sonhos (fragmento)
Sonhos vermelhos, azuis e verdes. Tenho sonhos de todas as cores. Sonhos brancos e sonhos rosados para todas as meninas de Flores
Há um sonho tão longo que ao sonhá-lo a vida se esvai. E um curtinho que é como um suspiro. Quem o sonha, sonha que suspira.
Nesta cesta eu trago, senhores, os sonhos famosos do bairro de Flores.
Tenho um sonho dourado, impossível. Tao belo que todos o querem. E outro negro, perverso, terrível: quem não acorda morre.
Tenho aqui, para das aos pobres, luxuosíssimos sonhos reais. São os mesmos que sonham os reis, aos sonhar, somos todos iguais.
Nesta cesta eu trago, senhores, os sonhos famosos do bairro de Flores.
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LUNCHEON TICKET: 
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Pseudônimo anglófilo que usava o Dr. Pelagio Faggiolo para escrever novelas policiais. Em seus relatos é elementarmente simples descobrir o assassino em virtude dos adjetivos que lhe atribui (por exemplo: o infame senhor Galveston)
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OS SEIS QUE SE SIGUEM:
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Harry, o ladrão simpático, estava cercado. Os seis detetives mais ilustres do mundo estavam na cidade, convocados para a caceria. Philo Vance, J.G.Reeder, Ellery Queen, Philip Marlowe, Sherlock Holmes e o padre Brown logo começaram seu trabalho. No entanto, o Anjo Cinzentod e Brooklyn acudiu em sua ajuda.
Vance recebeu uma ordem misteriosa e inapelável para seguir Reeder. A Reeder lhe ordenaram seguir Queen. Queen recebeu ordens de seguir Marlowe. Marlowe tinha que seguir Holmes. A Holmes disseram que devia seguir ao padre Brown. Finalmente o padre Brown foi comissionado para seguir Vance. Poucas horas depois os seis estavam imóveis numa praça espreitando-se mutuamente e esperando um primeiro passo que ninguém ia dar. Harry, o ladrão simpático, cometeu alguns delitos e depois começou uma nova vida num país longínquo. Os seis detetives continuam em Brooklyn atolados como universo imóvel que espera uma Vontade.
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NITO D'ALESIO: 
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Literato aficionado de Monte Carlo. Foi empregado municipal, como o permite deduzir seus manuscritos, sempre estampados no revés de formulários da prefeitura.
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A RUA DO BEM E DO MAL: 
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Como bem sabemos, a quadra do Anjo Cinzento está na rua Artigas, entre Bogotá e Bacacay. Acontece por lá uma coisa muito particular: numa das calçadas não é possível ser bom. Na outra é impossível ser mau. Uma noite passei com uma moça loira pela calçada oeste. Encurralei-a num portal escuro, a beijei com paixão e consegui possuí-la aí mesmo. Depois atravessamos a rua. E enquanto caminhávamos pela calçada oriental, lhe pedi que me esquecesse e abandonasse para sempre. Na quadra do Anjo Cinzento há duas calçadas. Numa não é possível ser bom, na outra não podemos ser maus. Ainda não tenho claro qual é qual.
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Há em nosso poder muitíssimos outros textos, todos com o mesmo escasso interesse.
Nestes dias ninguém se preocupa do assunto. Os Homens Sensíveis se dispersaram e as pessoas razoáveis prevalecem em Flores e no mundo inteiro. Talvez o próprio Anjo Cinzento, lá nos desolados campanários, cantará essa velha copla que convida a durar.
Os que não sabem sonhar, dizem que nunca me viram, e até eu mesmo suspeito que, quem sabe, não existo.

 
Ver também do mesmo autor: 

27 ago 2009

El Recuerdo y el Olvido en el Barrio de Flores

Alejandro Dolina
Crónicas del Ángel Gris
 A lembrança e o esquecimento no 
Bairro de Flores
Nos nossos tempos, não são muitas as pessoas de boa memória. Exceto claro, no bairro de Flores. Todos sabem as coisas que contam sobre o bairro do Anjo Cinzento.
E, mesmo que convenha desconfiar de qualquer testemunho a respeito, é quase um fato que os Homens Sensíveis fazem alarde de lembrar-se de tudo, e costumam se exercitarem em lances tão complicados como a tabuada de 113.
Isto pode surpreender quem já ouviu que os Homens Sensíveis de Flores fogem das precisões científicas como da peste e são mais bem propensos à improvisação.
Mas também acontece que estes espíritos vagabundos odeiam a morte e suspeitam que o que é esquecido morre. Por isso não é raro encontrar nos entardeceres da rua Artigas os rapazes sombrios decorando versos de comparsas, lembrando a formação de Boca Juniors em 1955 ou repetindo em voz baixa a lista de assistência do colégio. Estão resgatando coisas da morte.
Ao seu jeito, são salvadores. Entre tantos inimigos como têm os Homens Sensíveis, se encontra os Amigos do Esquecimento, organização com sede em Caballito, que propugna a abolição da lembrança, segundo eles porque dói. “Toda lembrança é triste” declaram estes cavalheiros. O pior destes ímpios é o seu ar de inocência, filho do esquecimento de suas culpas.
Suas faces sorridentes despertam a simpatia de todos e cada dia, dezenas de sócios novos se inscrevem na sede da rua Rojas.
O grupo se organiza em subcomissões que se encarregam por sua vez de esquecer certas porções do Universo. Assim... existe a Comissão do Esquecimento Permanente de Marcos Ciani, destinada a apagar os rastros do veterano piloto. Em suas reuniões de subcomissão deliberam sobre todo tipo de assuntos, com exceção daqueles que vinculem de algum modo com Marco Ciani.
Uma vertente ridicularizada dos Amigos do Esquecimento declara que as lembranças não são só tristes, mas também falsas. “Jamais lembramos das coisas tal e qual aconteceram”, declamam. De modo que para essa gente, as lembranças são uma espécie de sonho e os sonhos não merecem mais que o desprezo. Enquanto isso, os Homens Sensíveis decidiram que só os sonhos e as lembranças são verdadeiros, enfrentados à falsidade enganosa do que chamamos presente e realidade.
O que é mais verdadeiro? – perguntam – A amável lembrança de nossa primeira namorada, doce, ansiosa, inexplicável ou esta senhora contundente que compra fruta na quitanda da rua Condarco? Não é preciso dizer que os Amigos do Esquecimento são mais numerosos do que os Homens Sensíveis ou – ao menos – presumem disso. Mais justo seria esclarecer que muitas pessoas são Homens Sensíveis sem nem sequer suspeitar.
Vale a pena admitir neste ponto que há quem se aproxime dos Amigos do Esquecimento, não por simpatia filosófica, mas animados por propósitos tão mesquinhos como o desejo de esquecer-se de uma senhorita inconstante. Tais infiltrados são descobertos quase sempre pelos membros de alguma comissão, que possuem um olfato especial para distingui-los.
As sanções são, em geral, muito severas. Mas rara vez são levadas a cabo, precisamente porque os encarregados de executá-las se esquecem de fazê-lo.
Os Amigos do Esquecimento amam o futuro. Passam longas noitadas contando façanhas que ainda não cumpriram e se gabando dos amores que terão alguma vez. Sustentam, além disso, que sempre é melhor o que aconteceu depois. Constitui uma experiência interessante propor à escolha de um Amigo do Esquecimento dois objetos qualquer, sempre escolhem o que se menciona por último.
- Quer um sorvete de chocolate ou de creme?
- De creme.
- Prefere de creme ou de chocolate?
- De chocolate.
Deste critério surge um insuportável otimismo e espírito progressista. Qualquer novidade é acolhida na sede da rua Rojas com aplausos e gritos vitoriosos.
Os Homens Sensíveis – como todo mundo sabe – detestam o futuro, porque descobriram que no futuro está a morte.
O enfrentamento entre ambos grupos já chegou, muitas vezes, a uma módica violência. Mas as ofensas não deixam rastros. Em uns porque esquecem... em outros porque perdoam. De acordo com os Amigos do Esquecimento, a existência de meios idôneos para armazenar o conhecimento torna inútil todo esforço mental a respeito. Pouco sentido tem – argumentam – decorar a história dos fenícios quando há livros que a entesouram cabalmente.
Ao ouvir isso, os Homens Sensíveis se enfurecem:
- Ehh... os livros são apenas recipientes que contém o que logo hão de beber os homens.
Mas a essas alturas, os Amigos do Esquecimento já estão em outra coisa. Muitos Homens Sensíveis temem os computadores, às máquinas de calcular eletrônicas e ao Cérebro Mágico.
Sustentam que o uso destes aparelhos embota o engenho e atrofia o intelecto. Por isso é que, com toda freqüência, uma melancólica gangue percorre o bairro do Anjo Cinzento destruindo máquinas de pensar que acostumam haver em escritórios, para não mencionar caixas registradoras dos bares, balanças e relógios automáticos (no momento de destruir, os Homens Sensíveis se excitam e não andam com sutilezas).
Em sua longa luta contra a lembrança e a memória, os Amigos do Esquecimento desenvolveram interessantes estratégias. Mas sem dúvida nenhuma, seu mais importante achado foi o Licor do Esquecimento, um cordial de existência incerta que – pelo que parece – tem a virtude de acabar com o passado de quem o toma.
Outrora, os homens da rua Rojas se limitavam a beber eles mesmos o seu licor, embebedando-se loucamente de esperanças sem presságios. Mas logo começaram a misturar o licor com a genebra dos Homens Sensíveis para induzi-los a esquecer. Mas o pior aconteceu quando os Homens Sensíveis conseguiram destilar o Vinho da Lembrança, cujos efeitos são – como já suspeitarão – opostos aos do licor.
Também os rapazes do Anjo Cinzento percorreram o mesmo caminho: beberam sozinhos primeiro e trataram depois de usurpar as taças dos que de nada lembram. E isso foi terrível. Porque se o Licor do Esquecimento e o Vinho da Lembrança são por si mesmo perigosos, a mistura é verdadeiramente mortal.
O autor desta crônica acredita haver experimentado – sem suspeitar – esse espantoso coquetel. Seus efeitos se traduzem em escuras nostalgias do que virá, em esquecimentos do que nunca aconteceu e um sabor amargo e doce que faz chorar. As senhoritas Amigas do Esquecimento acostumam passear pelo bairro de Flores para apaixonar os Homens Sensíveis. Os rapazes do Anjo Cinzento – bem o sabemos – são de coração mole e se apaixonam para sempre. Então as senhoritas de Caballito se esquecem deles e os abandonam sem remorsos. Estes tristes episódios favorecem – no entanto – o florescimento das artes em Flores, pois os Homens Sensíveis acostumam compor seus melhores versos, fazer suas canções mais sentidas e esculpir seus mais belos anéis quando sofrem.
Pouco custa imaginar qual será o fim desta luta entre o esquecimento e a memória.
Os Homens Sensíveis de Flores estão derrotados. De nada lhes valerá se oporem à morte, porque a morte chegará de todos modos. De nada lhes servirá sua paixão pela memória, pois toda memória é perecedoura. E – em definitiva – o tempo é o melhor aliado dos Amigos do Esquecimento.
Mas é nossa obrigação fazer um pouco de força pelos rapazes de Flores, para que sua derrota seja mais honrosa. Lembremos o tempo todo. Não esqueçamos de nada. Nem da cor de nossas gravatas perdidas, nem do cheiro de giz e suor do colégio, nem o calor do asfalto sob os nossos pés descalços, nem o gosto de jasmim dos beijos na noite.
Se nos espera o esquecimento, tentemos não merecê-lo. E pensemos que depois de tudo, mesmo que a vitória final seja dos Amigos do Esquecimento, será um triunfo sem festejos. Ninguém o lembrará jamais.

23 ago 2009

Estorbando el Tránsito.

Construção / ¨Deus lhe Pague
Chico Buarque


Entrevista sobre Constrão

Chico – No fue más que una experiencia formal, un juego de bloques. No tenía nada que ver con el problema de los obreros.

Status – Por lo tanto, no había ninguna intención en la música

Chico – Exactamente. En el momento en que compongo no hay intención – sólo emoción. En “Construcción” la emoción estaba en el juego de palabras (todas esdrújulas). Ahora, si colocas a un ser humano dentro de un juego de palabras, como si fuera un bloque – terminas tocando las emociones de las personas.

Status – Entonces no te preocupas con la intención?

Chico – Todo está interconectado. Pero hay diferencia entre hacer las cosas con intención o – en mi caso – hacerlo sin la preocupación del significado. Si yo viviera en una torre de marfil, aislado, tal vez saliera un juego de palabras con algo etéreo en el medio, la Patagonia tal vez, que no tiene nada que ver con nada. En resumen, yo no colocaría en la letra a un ser humano. Pero no vivo aislado. Me gusta entrar en un bar, jugar billar, oír la conversación de la calle, ir al fútbol. Todo entra en la cabeza amontonadamente y sale en silencio. Sin embargo, resultado de una vivencia no solitaria, que equilibra el juego mental y garantiza tener los pies en el piso. La experiencia nos da la carga opuesta a la soledad, y viene de la solidaridad – es el contenido social. Pero se trata de algo intuitivo, no intencional: hace parte de mi formación que comprende – igual que los demás de mi generación – jugar a la pelota y pelear en la calle, leer historietas, pegar, a los seis años, carteles a favor del Brigadier, a causa de mis padres, contrarios al Estado Novo.

Revista Status, entrevista de Judith Patarra, 1973





Construcción

Amó aquella vez como si fuera la última
Besó a su mujer como si fuera la última
Y a cada hijo suyo cual si fuera el único
Y atravesó la calle con su paso tímido
Subió a la construcción como si fuese máquina
Irguió en el rellano cuatro paredes sólidas
Ladrillo con ladrillo en un diseño mágico
Sus ojos embotados de cemento y lágrima
Sentó a descansar como si fuese sábado
Comió porotos con arroz como si fuera un príncipe
Bebió y sollozó como si fuese un náufrago
Bailó y se rió como si oyese música
Y tropezó en el cielo como si fuera un alcohólico
Y flotó en el aire como un paquete fláccido
Agonizó en el medio del paseo público
Murió en la contramano estorbando el tránsito.

Amó aquella vez como si fuera el último
Besó a su mujer como si fuera la única
Y a cada hijo suyo cual si fuera el pródigo
Y atravesó la calle con su paso alcohólico
Subió a la construcción como si fuera sólido
Irguió en el rellano cuatro paredes mágicas
Ladrillo por ladrillo en un diseño lógico
Sus ojos embotados de cemento y tránsito
Sentó a descansar como si fuera un príncipe
Comió porotos con arroz como si fuera lo máximo
Bebió y sollozó como si fuese máquina
Bailó y se rió como si fuera el próximo
Y tropezó en el aire como si oyera música
Y flotó en el aire como si fuera sábado
Y terminó en el piso como un paquete tímido
Agonizó en el medio del paseo náufrago
Murió en la contramano estorbando al público


Amó aquella vez como si fuera máquina
Besó a su mujer como si fuera lógico
Irguió en el rellano cuatro paredes fláccidas
Sentó a descansar como si fuera un pájaro
Y flotó en el aire como si fuera un príncipe
Y acabó en el piso como un paquete alcohólico
Murió en la contramano estorbando el sábado




Dios le Pague

Por ese pan para comer, por ese piso para dormir
El certificado para nacer y el permiso para sonreír
Por dejarme respirar, por dejarme existir,
Dios le pague.
Por el aguardiente gratis que tenemos que tragar
Por el humo y la desgracia que tenemos que toser
Por los andamios colgantes que tenemos que caer
Dios le pague
Por la llorona para honrarnos y escupirnos
Por las moscas a besarnos y cubrirnos
Por la paz postrera que por fin nos va a redimir,
Dios le pague.






De Frente Pro Crime
João Bosco




Frente al crimen

Ahí está el cuerpo
Tendido en el piso
En vez de rostro
Una foto de un gol (1)
En vez de rezos
Un insulto de alguien
Y un silencio
Fungiendo de amén…

El bar cercano
En seguida se llenó
Malandrín junto a trabajador
Un hombre subió
A la mesa del bar
E hizo un discurso
Para intendente


Vino el vendedor ambulante
A vender!
Anillo, cadenas
Perfume barato
Y la bahiana
Que hace pasteles
Y un buen asado de gato (2)


Cuatro de la mañana
Bajó el santo
En la Porta-bandera (3)
Y la muchachada resolvió
Parar y entonces…

Ahí está el cuerpo
Tendido en el piso
En vez de rostro
Una foto de un gol
En vez de rezos
Un insulto de alguien
Y un silencio
Fungiendo de amén…


Sin prisas se fueron
Cada uno por su lado
Pensando en una mujer
O en su equipo de fútbol
Miré el cuerpo en el piso
Y cerré mi ventana
De frente hacia el crimen…

Vino el vendedor ambulante
A vender!
Anillo, cadenas
Perfume barato
Y la bahiana que hace
Pasteles
Y un buen
Asado de gato
Cuatro de la mañana
Bajó el santo
En la Porta-bandera
Y la muchachada resolvió
Parar y entonces…

Ahí está el cuerpo
Tendido en el piso…



(1) "Em vez de rosto uma foto de um gol": Esta imagen representa el hábito de colocar un diario cubriendo el rostro de las personas que mueren en la calle hasta que éstas sean llevadas a la morgue.
(2) "churrasco de gato": Así se les dice, familiarmente, a las brochetas que se venden en carritos ambulantes. Se dice, humorísticamente, que estas brochetas, sospechosas, son hechas con carne de gato en vez de carne de ternera.
(3) "baixou o santo na porta-bandeira": "Baixar o santo" se dice de las religiones afrobrasileñas cuando el médium incorpora un espíritu.




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17 ago 2009

Santa María de Iquique

Reuni aqui alguns textos e música sobre a história do massacre de operários na escola Santa Maria de Iquique em 1907. Este foi a maior chacina de trabalhadores inocentes, mulheres e crianças da história do Chile.


No cancioneiro do grupo chileno Quillapayún há um disco, de 1970, chamado Cantata Popular de Santa Maria de Iquique. São 18 músicas que contam a história do massacre da Escola Domingo Santa Maria, em 1907, em que 3.600 operários salitreiros chilenos foram assassinados como resposta dos “negociadores” diante da greve de uma das atividades mais importantes do país e na época já controlada por estrangeiros, principalmente ingleses.

Triste coincidência, na obra Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, há o relato de um acontecimento parecido. Na fictícia Macondo de Cem Anos de Solidão, acontece o massacre de mais de três mil trabalhadores (3.600 de acordo com a Cantata) que negociavam o fim da greve na Companhia Bananeira, também controlada por norte-americanos. No romance, o episódio foi escondido de todos. Os corpos foram jogados nos vagões de um trem e nunca mais apareceram. Ninguém acreditou no depoimento do único sobrevivente e foi como se o massacre não tivesse acontecido. Da mesma forma, o assassinato dos grevistas chilenos não consta dos principais conteúdos escolares, apesar de sua importância e relevância, e muito menos nas páginas dos periódicos brasileiros.

Em suas memórias, García Márquez diz que o episódio do massacre dos trabalhadores bananeiros foi inspirado numa história que ele ouvia quando era criança e que, da mesma forma, era só comentado pelos mais velhos, mas não havia outro registro. Mais uma vez comprovando o universalismo de Cem Anos de Solidão, a realidade latino-americana é espelhada nas páginas do livro.
O sociólogo Emir Sader aponta o massacre de Iquique como o primeiro de uma série de acontecimentos que fizeram o mundo conhecer a América Latina. Na seqüência vieram a Revolução Mexicana, a Reforma Universitária de Córdoba, a Revolução Cubana, além do reconhecimento internacional da literatura com os prêmios Nobel de Gabriela Mistral, Miguel Angel Astúrias, Pablo Neruda e Gabriel García Márquez.

Fonte:
http://www.latinoamericano.jor.br/memoria_viva_iquique.html




(...) As lições que a chacina de operários, operárias e crianças no Iquique de 1907 pode nos dar hoje são bem claras: históricas, assinalando as bases (violência armada, legalidade da injustiça e distorção da informação) sobre as que foi possível levantar o capitalismo (memória da barbárie); políticas, considerando que os metralhados aí não estavam unidos pela cor da pele ou por sua nacionalidade, mas sim por sua condição social; e teórico, já que nos lembra que nada disto poderá acontecer enquanto não seja necessário para a invisível classe burguesa (e para nós que estamos colados a ela) aplicar sem limites, até onde seja necessário, sua lógica de dominação. As lições da “Cantata” de Luis Advis são também simples: se perdemos a nossa história, o que nos constitui realmente, perdemos a possibilidade de atuar no mundo. “Vocês que escutaram a história que se contou, não continuem sentados pensando que já passou, não basta apenas a lembrança, o canto não bastará, não bastará apenas o lamento, vejamos a realidade”, dizia a canção final desta cantata. Para isto precisamos escutá-la: para deixar de ser como eles.

Fonte:
Capitalismo y barbarie. Cien años de la masacre en la Escuela Santa María de Iquique.
César de Vicente Hernando





Tradução do texto do vídeo


“Lá ao “pampino”(1) pobre
Mataram por matar”

Quem viveu a experiência de trabalhar nas oficinas salitreiras, deixaram gravados nos arquivos da memória os ingentes esforços por sobreviver nas paragens mais inóspitas do mundo.
Naquelas imensas extensões desérticas de sol queimante, remoinhos de vento e “camanchaca”(2) que é a Pampa salitreira...

Eu pertenço a outra categoria
E apenas um homem sou,
De carne e osso
Por isso, se espancarem meu irmão
Com o que tiver à mão eu o defendo.

E se observarem a Pampa e a imaginarem em tempos da indústria do salitre, verão à mulher e ao fogão murcho, ao operário sem cara, à criança triste.

Se contemplam a Pampa e seus recantos, verão as estiagens do silêncio. E se observarem a Pampa como fora sentirão, destroçados, os lamentos.

“O Sol em deserto grande
E o sal que os queimava”

De uma a outra oficina, como rajadas, ouvia-se os protestos dos operários. De uma a outra oficina, os senhores, o rosto indiferente ou em desprezo.

O que fazer então? O quê, se ninguém escuta? Irmão com irmão perguntavam. É justo o pedido e é tão pouco. Teremos que perder as esperanças?

E assim, com o amor e o sofrimento, foram se juntando vontades. Em um só lugar compreenderiam! Havia que descer ao Porto Grande.

“Não há que duvidar, confia já vais ver
Porque em Iquique, todos vão entender.
Toma mulher, minha manta te agasalhará,
Ponha a criancinha em braços, não chorará.
Não chorará, confie, ele vai sorrir,
Contarás-lhe uma história, ele vai dormir”
(...)
“Dizem que Iquique é grande, como um campo de sal,
Que há muitas casas lindas, você gostará, gostará,
Confia como que Deus existe
Lá no porto tudo vai ser melhor”

E vão descendo ansiosos e vão chegando os milhares da Pampa, os postergados. Não mendigavam nada, apenas queriam respostas ao que pediram. Resposta limpa aos grêmios. E solidarizaram os carpinteiros, os das oficinas mecânicas, os carreteiros, os pintores e alfaiates, os jornaleiros, barqueiros, pedreiros e padeiros, os encanadores e vendedores, os carregadores. Grêmios de apoio justo, de gente pobre.
Os senhores de Iquique tinham medo, era muito pedir ver tanto operário: o “pampino” não era homem cabal, podia ser ladrão ou assassinar.
Enquanto isso as casas eram fechadas. Olhavam somente a través das janelas. O comércio fechou também suas portas, havia que se cuidar de tanto monstro. Melhor juntá-los em algum lugar, se andavam pelas ruas, era um perigo.

“e os outros mais ricos
Não nos querem dar a cara”

O lugar ao que os levaram era uma escola vazia, e a escola se chamava... Santa Maria.
Deixaram os operários, os deixaram com sorrisos. Que esperassem! – lhes disseram – apenas uns dias.
Operário sempre é perigo, prevenir é necessário. Assim, o estado de sítio foi declarado.

“Sou operá
Sou operário pampino e sou
Tão tão vê
Tao tão velho como quem mais
E come
E começa a cantar minha voz
Com temo
Com temor de algo fatal
O que eu sin
O que eu sinto nesta ocasião
Eu terei
Eu terei que comunicar
Algo tris
Algo triste vai acontecer
Algo horrí
Algo horrível nos acontecerá”

Ninguém diga palavra, que chegará um nobre militar... um general! Ele saberá como lhes falar, com o cuidado que trata o cavalheiro... a seus lacaios. O general já chega com muita pompa... e muito bem precavido com seus soldados, as metralhadoras estão dispostas... e estrategicamente rodeiam a escola. Desde uma sacada lhes fala com dignidade, isto é o que diz o general:
De nada serve tanta comédia. Deixem de inventar tanta miséria. Não entendem seus deveres, são ignorantes! Perturbam a ordem, são meliantes! Estão contra o país, são traidores! Roubaram a pátria, são ladrões! Violaram mulheres, são indignos! Mataram soldados, são assassinos! É melhor ir embora sem protestar... mesmo que peçam e peçam... nada obterão!
Desde a escola o loiro, operário ardente responde sem vacilar, com voz valente. “O senhor, meu general não nos entende. Continuaremos esperando custe o que custar. Já não somos animais, já não rebanhos, levantaremos a mão, o punho em alto. Vamos dar novas forças com o nosso exemplo, e o futuro saberá, eu lhe prometo. E se quer ameaçar, aqui estou eu: dispare a este operário, no coração.

O general que escuta não vacila. Com raiva e gesto altaneiro lhe dispara. O primeiro disparo e a ordem pra chacina e assim começa o inferno com as descargas.

“três mil e seiscentos
Um atrás do outro
Três mis e seiscentos mataram
Um atrás do outro.
A Escola Santa Maria
Foi o extermínio
De vida que morria
Só alarido
Três mil e seiscentos olhares
Que se apagaram
Três mil e seiscentos
Operários
Assassinados.”

(...)

“Jamais o conseguirão
A terra será de todos
Também será nosso o mar
Justiça haverá para todos
E haverá também liberdade
Lutemos pelos direitos
Que todos devem ter
Lutemos pelo que é nosso
De ninguém mais há de ser”

(...)

“Unamo-nos como irmãos
Que ninguém nos vencerá
Se quiserem nos escravizar,
Jamais o conseguirão”


(1) Pampino: Pessoa que trabalha na pampa salitreira
(2) Camanchaca: névoa espessa e baixa


Obs.: O vídeo reúne trechos de músicas da Cantata a Santa Maria de Iquique do grupo Quilapayún e do relato de Luis Advis.


Cantata de Santa María de Iquique
Grupo Quilapayún

Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV











Santa Maria das Flores Negras
Hernán Rivera Letelier

Sobre o autor






Eram as três e quarenta minutos da tarde do dia sábado 21 de dezembro - o vento do mar ainda não começava a correr em Iquique -, quando o general Roberto Silva Renard, desde a altura de sua cavalgadura branca abaixou o braço dando a ordem de fogo.
No mesmo instante, o pelotão do O’Higgins fez sua primeira descarga em direção ao terraço da escola onde, de pé frente à praça, rodeados de bandeiras e estandartes, com a atitude serena dos que sabem que lutam por algo justo, permaneciam uns trinta dirigentes do Comitê Central. À descarga de fuzilaria vários deles caíram sobre o tumulto que cobria a porta e as grades do pátio exterior. Em seguida, o general ordenou ao pelotão da marinha situado na esquina da rua Latorre, que disparasse justamente à fachada do local onde se amontoava a maioria dos grevistas mais afogueados e buliçosos. Era tal a confiança nossa e a de todas as pessoas a respeito de que o Exército chileno jamais cometeria o crime de disparar suas armas sobre compatriotas indefesos que enquanto os da frente, muitos com cigarros acesos nos lábios, caíam perfurados por tiros dos fuzileiros, os de atrás gritavam a viva voz, convencidos sinceramente de suas palavras, que não havia de que se assustar, irmãozinhos, que era apenas balas de festim. No entanto, os que vimos cair crivados junto a nós aos primeiros companheiros de trabalho, os amigos da vida toda ou nossos próprios familiares, e que espantados pela visão tentamos nos debandar em levas em direção às ruas laterais, fomos obrigados pela tropa que rodeava o lugar, a ponta de lança e disparo de fuzis, a voltar ao centro da praça onde a confusão era infernal. Mas as descargas dos fuzileiros eram apenas o prefácio, o prelúdio da sinfonia terrível que as metralhadoras, com pontaria fixa à sacada do Comitê Central, começaram a entoar logo no anfiteatro da Praça Montt. À varredura de seu martelar atordoante, outros tantos corpos de dirigentes caíram sobre a multidão produzindo um turbilhão tal que, de repente, sem ter aonde correr, nos vimos empurrados em torrente ao mesmo lugar onde estavam situados esses trambolhos do demônio vomitando seus sonâmbulos clarões de morte. Logo de uma segunda varredura à sacada central, as metralhadoras modificaram sua altura, baixaram suas bocas de fogo em direção à massa de gente que ultrapassava a fachada da escola e, sem nenhuma comiseração por crianças e mulheres, começaram a rugir seu tiroteio mortal. Uma chacina inconcebível e as pessoas que haviam ficado a ver em que terminava esse protesto de pampeiros e vendedoras ambulantes que, certas como todo mundo de que nunca chegariam a disparar, ficaram instaladas tranqüilamente na praça oferecendo suas mercadorias. O sangue das primeiras dezenas de mortos cerceados pela metralha começou a formar vermelhas poças fumegantes que sumiam escuramente na terra e impregnavam o ar de um denso odor ardente. Como já não cabiam dúvidas de que se tratava de uma matança sem quartel, as pessoas começaram a gritar aflitas que içassem bandeiras brancas, irmãozinhos, que levantassem bandeiras brancas caralho. E várias dezenas de panos, lenços, aventais de trabalho, alguns já manchados de sangue, emergiram entre a multidão, agitados desesperadamente como sinais de rendição. Mas no fragor e na confusão do massacre ninguém ligou pra eles e as metralhadoras continuaram vomitando seu mortífero fogo implacável.
Frente às ondas de morte, certamente o general havia-se abstraído nessa espécie de fascinação que se produz ao contemplar as labaredas das chamas de uma fogueira. Em quanto o martelar ensurdecedor das metralhadoras continuava ressoando como dentro da caixa de nossos próprios crânios, a fuzilaria não deixava de disparar fogo nutrido em direção ao povo atocaiado na carpa do circo e sobre os que tentávamos fugir da linha de fogo. A ár dua luz do dia e o pó levantado pelo turbilhão da multidão enlouquecida faziam aparecer todo o quadro como uma alucinante cena de horror. Envolvidos em uma confusão espantosa, sem encontrar por onde nem para onde fugir das balas, nos recolhemos de novo em direção às portas da escola onde se produziu um impressionante redemoinho humano, pois ao mesmo tempo os milhares de grevistas apinhados no primeiro pátio tentavam escapar em lufadas da ratoeira mortal em que se havia convertido.