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26 sept 2009

La decadencia de la amistad

A decadência da amizade
Alejandro Dolina


Muitos pensadores acreditam que, nestes tempos, a amizade é mais um tema de conversa do que uma atividade concreta.
Certamente é relativamente fácil encontrar pessoas dispostas a compor canções sobre os amigos. No entanto, é bastante difícil conseguir que essas mesmas pessoas nos emprestem dinheiro.
Pelo que parece, o sentimento amigável se encontra em decadência. Todos os dias tropeçamos com canalhas que, longe de se preocuparem pela escassez de amigos, se orgulham dela.
- Eu, amigos, o que se diz amigos, tenho muito poucos ou nenhum – nos gritam na cara. E não advertem que o sujeito está esperando que o parabenizem por semelhante façanha.
Nos anos dourados de Flores, quando alcançavam seu apogeu a compreensão, a poesia e as cutucadas de cotovelos, também existiam inimigos da amizade que preocupavam aos Homens Sensíveis.
Manuel Mandeb, o metafísico da Rua Artigas, colecionou algumas de suas obtusas opiniões em um opúsculo titulado maliciosamente Los Amigos. Com de costume, transcreveremos alguns parágrafos.
“... A amizade deve nascer na juventude ou na infância. Nossos amigos são aqueles que aprendem junto a nós ou, melhor ainda, os que vivem aventuras ao nosso lado. E, em geral, as pessoas aprendem e vivem aventuras na sua juventude. Depois quase todo mundo consegue algum emprego em casas comerciais e já fica impossível adquirir conhecimentos novos ou brigar com uma turminha.”
“... aos onze ou doze anos, começamos a detestar a família e a achar que os rapazes da esquina são muito mais divertidos do que o tio Jorge. Durante mais ou menos uma década ninguém estará mais perto do nosso coração do que estes rapazes. E se queremos nos aprovisionar de amigos, devemos fazê-lo nesse período. Depois será tarde demais...”
Pelo que se pode apreciar, o critério de Manuel Mandeb é interessante e talvez verdadeiro. Acontece que em certo momento da vida, descobrimos que estamos rodeados de estranhos: colegas de trabalho, fregueses, credores, vizinhos, cunhados. Os amigos de verdade estão longe, provavelmente encerrados em círculos parecidos.
Alguns teimosos insistem em cultivar amizades novas. Os matrimônios maduros se visitam mutuamente e desenvolvem pálidas paródias da amizade verdadeira: contam uma e outra vez episódios antigos, vividos com os amigos velhos, que já não estão. Quando somos jovens não contamos histórias aos nossos amigos: as vivemos com eles. Apesar destas sábias reflexões de Mandeb, existiu em Flores uma agência destinada a oferecer amizade aos solitários. Foi o célebre Armazém de Amigos de Ocasião. Seus fins de lucro eram inegáveis. Ainda hoje se lembra do seu ‘slogan’ publicitário: “Tenha um amigo desinteressado. Pague-o em prestações”.
Já ao se aproximar ao balcão, o freguês já notava um clima amigável e amplo. Os empregados sabiam como atacar.
- Boa tarde. Você não sabe o que a bruxa da minha mulher fez comigo hoje de manhã...
E aos trinta segundos já nos sentíamos entre amigos. Depois, entre tapinhas nas costas, piscadelas, beliscões e confidências, os comerciantes iam mostrando o amplo catálogo do armazém.
Tinham amigos silenciosos, dispostos a escutar cinqüenta vezes a história de uma operação. Amigos complacentes, sempre amáveis e elogiosos. Amigos efusivos que cumprimentavam com abraços e se despediam aos gritos. Amigos divertidos, rudes com piadas picantes e peritos em brincadeiras pesadas.
Também se prestava um serviço um tanto mais caro, especialmente para pessoas de alta posição. Consistia no aluguel de uma corte de aduladores que acompanhavam o cliente a todas as partes, riam de suas piadas, aplaudiam suas idéias e subscreviam com entusiasmo qualquer um de seus pensamentos. Precedendo esta comparsa, costumava marchar um “corneta” que abria a porta dos bares e metendo a cara gritava:
- Aí vem o doutor Del Prete!
O trabalho era tão bem feito que muitos dos contratantes já não puderam prescindir dele nunca mais. Muitos profissionais do bairro extinguiram sua fortuna pagando este serviço da agência.
Um assunto que incomodava os clientes era o rigor dos Amigos de Ocasião em seus horários. Quando expirava o prazo estipulado, acabava a amizade. Sem cumprimentar, os contratados davam meia volta e iam embora, muitas vezes interrompendo uma gargalhada ou se livrando bruscamente de um abraço fraterno.
No entanto, temos que admitir que alguns aspectos do funcionamento do Armazém eram bastante nobres.
Por exemplo, a Seção Crianças permitia que os pais escolhessem os amigos de seus filhos, sem correr risco algum.
Para isso, contavam com um numeroso plantel de crianças e inclusive de anões adestrados em diferentes atitudes.
De acordo ao gosto paterno, podiam encontrar crianças peraltas pra despertar os pequenos bobalhões, crianças estudiosas para estimular os meio burros, e crianças educadas e ajuizadas para serenar os mais piratas.
Claro, não puderam evitar que muitas crianças se resistissem à decisão de seus pais. Assim, ouvia-se com freqüência em Flores frases como esta:
- Vá brincar com os amiguinhos que seu pai alugou, poxa!
Existia também um departamento para Damas, com um amplo surtido de fofocas. Alguns mal intencionados diziam que as mulheres não contratavam amigas, senão inimigas, mas isso é outro assunto.
O fracasso mais espalhafatoso foi o da seção de Amizades Mistas. Nada difícil é perceber que os cavalheiros que solicitavam amigas escondiam quase sempre outras intenções. Não se espante o leitor pensando que nos internaremos em um tema tão enxovalhado como o da amizade entre a mulher e o homem. Vale a pena – isso sim – recordar o que disse Manuel Mandeb a uma amiga sua, talvez alugada no Armazém.
- Veja, eu posso ser seu amigo se a senhora quiser. Não tentarei seduzi-la nem me porei romântico, nem lhe farei propostas indecorosas. Mas saiba que eu preciso que exista um amor potencial. É indispensável para mim que exista uma possibilidade em um milhão de que algo surja entre nós. Deixo claro que é provável que se essa circunstância se apresenta, eu saia correndo. Mas é unicamente em virtude dessa remotíssima chance que eu estou aqui ouvindo a sua conversa feito um imbecil.
Os Homens sensíveis nunca foram bons clientes do armazém Amigos de Ocasiao. Talvez porque seus orçamentos eram muito humildes. Ou talvez porque gostavam que os amassem de graça. Em qualquer caso, os rapazes do Anjo Cinzento tinham pudor nestas questões. Para eles andar declarando publicamente o grau de amizade que sentiam por alguém era coisa de afeminados. Manuel Mandeb passava longas horas na esquina de Artigas e Morón fumando com Jorge Allen, o poeta. Muitas vezes nem se falavam. Contentavam-se com saber que o outro estava ali.
Já em sua última etapa, o armazém começou a oferecer velhos amigos.
No inicio a idéia era rastrear – a pedido do cliente – o paradeiro de pessoas ausentes e afastadas. Mas como advertiram que a tarefa era complicada demais, resolveram que era mais fácil inventar antigas amizades que resgatá-las do passado.
Prepararam então um magnífico grupo de velhos mentirosos que ante a entrada de algum candidato de certa idade, fingiam reconhecê-lo e soltavam quatro ou cinco lembranças para ir tomando confiança.
Esta seção trabalhava muito nas ceias anuais que costumavam realizar os ex-alunos dos colégios. Sua missão consistia em ir substituindo os falecidos e manter sempre a concorrência.
Assim, em certa reunião de formados do Colégio Nacional Nicolás Avellaneda, promoção 1921, aconteceu o curioso caso de que nenhum dos assistentes tinha pisado jamais esse estabelecimento, o que não os impediu de evocar professores, rir das passadas travessuras e brindar por encontros futuros.
Com o tempo, a atividade do armazém foi minguando. Contribuiu a esse fato, certa má fama que sempre ganha a amizade para os espíritos céticos. Em Flores, e em todos os bairros, se contavam lendas sobre as traições dos amigos e sobre a vantagem da solidão. Ainda em nossa época, há pessoas que sentem prazer em declarar que os cachorros são mais leais e sinceros do que os humanos. Cabe sobre isso uma pequena reflexão.
Talvez seja verdade que os cachorros não traem. Mas isso não é na verdade uma virtude do animal. Acontece simplesmente que a modesta organização mental do cachorro lhe impede realizar processos tão complicados como um calote. Quer dizer: os cachorros não podem nos trair pelo mesmo motivo que não podem escrever novelas.
Hoje, quando já não existe o Armazém Amigos de Ocasião, vele a pena perguntar se não será necessário inventar algo para substituí-lo.
Será difícil, claro. Ninguém poderá resgatar os amigos perdidos. Pouco poderá ser feito para nos livrarmos dos desconhecidos que preenchem nosso tempo. Em todo caso, cada um de nós deverá cuidar do pouco que tenha. Sem compor canções nem escrever poemas. Trata-se unicamente de se sentar um pouco na calçada ou de tomar chimarrão em silêncio com os que estão mais perto do nosso espírito.
Se já não temos os amigos de antes, é possível que exista no mundo velhos amigos que ainda não conhecemos.
Eu mesmo, na outra noite, resolvi sair do meu encerro e cheio de ilusões me encaminhei a certa esquina que conheço. Tinha vontade de fumar em silêncio junto a três ou quatro sujeitos que se estacionam naquele lugar.
Pensava, além disso, recolher uma piscadela amigável depois destes anos em que estive tão ocupado.
Mas algo estranho deve ter acontecido, porque não havia ninguém.




Leyenda del volador de Flores

Lenda do voador de Flores
Alejandro Dolina




Quase todos os homens sensíveis de Flores conheciam Luciano, o voador. Costumava atender uma banca de jornal na esquina de Bocayá com a Avenida. Seus apologistas asseguram que levantava apostas do jogo do bicho, coisa que não consta para nada ao compilador destas histórias. De resto, a través de todos os mitos de Flores parece constante o desejo de enaltecer a lembrança dos heróis, atribuindo-lhes atividades relacionadas com o jogo. Se for verdade o que se conta, Luciano voava. Suas escassas fotografias o mostram leve e magro, mas carente de asas. Uma delas, que costuma ser usada como prova do seu dom, o registra ao lado direito de um grupo numeroso e seus pés aparecem no ar, a uns escassos vinte centímetros do chão. Os cépticos atribuem este efeito a um truque fotográfico ou a um pequeno pulo oportuno.
No entanto, a tradição oral de Flores insiste em recordar os vôos de Luciano. Os mais velhos asseguram que, quando era uma criança, despendurava as pipas que ficavam embaraçadas nas árvores e recobravam as bolas que caiam nos tetos da vizinhança. Já mais velho, preferiu sempre vôos noturnos. Parece que o céu sustenta melhor de noite e não se corre o risco de chamar a atenção dos bobalhões.
Faz-se a exceção nos dias de chuva ou granizo. Luciano prescindia dos ônibus e taxímetros. Uma pequena viagem ao centro lhe ocupava apenas dez minutos. Costumava aterrissar em terraços solitários e descer pelo elevador para evitar o escândalo. Sendo voador, Luciano era discreto. Conheceu – dizem por aí – o segredo de todos os campanários de Flores, cruzou mil vezes com as bruxas nuas que sobrevoam Belgrano e cumprimentou os anjos ociosos que se deixam levar pelo vento.
Seus inimigos o acusavam de roubar figos e velocípedes, para não falar das lâmpadas das luminárias públicas. Os aviões lhe produziam terror, desde um dia em que passeando por El Palomar, um ardo Avro Lincoln quase lhe arranca a cabeça.

Manuel Mandeb foi o principal fornecedor de anedotas de Luciano. O pensador árabe conta – por exemplo – as desagradáveis conseqüências que padeceu por causa de sua ignorância no uso da bússola e da posição dos astros. Assim, nos dizem que uma noite que voava em direção ao Estádio de Vélez Sársfield com a ladina intenção de entrar de penetra, equivocou o caminho e descobriu as vertentes do rio Matanza. Encontrou lá – sustenta Mandeb – grandes populações lacustres semelhantes às que surgiram em Suíça há milênios. Tomando-o por um Deus, os inocentes habitantes o acolheram, lhe deram de beber hidromel, cederam-lhe uma jovem mais ou menos donzela e lhe obsequiaram uma parelha de galinhas e um vaso de flores, único destes objetos que ainda conserva.
Estes contos são muito suspeitos. Suspeita também é a história que fala de Luciano seguindo uma revoada de andorinhas até os trópicos ou aquela que faz referência à luta contra uma condor caipira. Quando começaram as calamidades no bairro de Flores, Luciano decidiu partir. As pombas azuis com suas penas de aço invadiram o céu do bairro e o voador sentiu medo.
Manuel Mandeb insiste em que antes de ir embora para sempre, Luciano lhe contou o segredo da sua incrível destreza. Diz Mandeb que um mágico estrangeiro lhe concedeu o dom do vôo, mas fez a seguinte recomendação: “Voarás, Luciano, mas cuida de que quem o saiba não escreva nunca a sua história. Quando alguém a leia, seu poder cessará definitivamente”
Isto explica que as façanhas de Luciano só tenham sido transmitidas em forma oral. Nenhum dos literatos de Luciano o menciona jamais. Graças a isso Luciano continuou voando até o dia de hoje, leitor ímpio, em que seus olhos curiosos o despenharam para sempre.



21 sept 2009

El arte de la impostura



A  arte da impostura.
Alejandro Dolina


O homem de nossos dias vive tentando causar uma boa impressão. Seu principal desvelo é a aprovação alheia. Para consegui-la existem diferentes métodos e estratégias.
Alguns exercem a inteligência, outros decidem pela tenacidade ou a beleza, outros cultivam a santidade ou a coragem.
No entanto, por ser todas estas virtudes muito difíceis de cumprir, certos trapaceiros se limitam a fingi-las. Claro que também não é simples: o engano é uma disciplina que exige atenções e cuidados permanentes.
Por sorte para os hipócritas e simuladores, existe desde há muito tempo o Serviço de Ajuda ao Impostor.

1- Baseados em modernos critérios científicos, os especialistas da organização instruem, aconselham, ditam aulas, remexem casos particulares e difundem as técnicas mais refinadas para obter aparências de proveito. Quando algum pé rapado quer presumir de elegante, o Serviço lhe recomenda alfaiates, loções e gravatas. Quando se trata de aparentar cultura, o cliente tem à sua disposição frases feitas, aforismos brilhantes e gestos de suficiência. Os que pretendem passar por corajosos são adestrados na arte da fleuma e da malandragem. Muitos pobres praticam para se fingirem de ricos, e muitos ricos se esforçam por parecerem indigentes. Devemos dizer que alguns postulantes são muito burros e não chegam a completar os cursos. Outros têm características tão marcadas que acaba sendo impossível dissimulá-las. Durante muitos anos, os hipócritas desaprovados deveram se resignar a mostrar cruamente as suas verdadeiras e abomináveis condições, ou bem serem descobertos em suas torpes fraudes. Mas com o tempo, o Serviço encontrou uma fórmula drástica para socorrer aos menos favorecidos. Assim nasceu a substituição como recurso extremo. Imaginemos um moreno tentando infrutuosamente ingressar num seleto clube noturno. O homem fracassa com as tinturas e maquiagem. Imediatamente o serviço designa um loiro de pés a cabeça em sua substituição. O impostor entra sem problemas e em nome do moreno rejeitado, dança e se diverte a noite toda.
Os exemplos são inúmeros: estudantes medíocres que se fazem substituir nas provas; apaixonados tímidos que – como Cyrano de Bergerac – mandam em seu lugar um mulherengo; empregados capazes que para conseguir um Ascenso enviam um lambe-botas e pessoas fartas da sua família que se fazem substituir nos aniversários.

O Serviço de Ajuda ao Impostor foi aperfeiçoando a tecnologia da substituição com disfarces impecáveis. Suspeita-se que, hoje em dia, a maioria das pessoas com quem tratamos são na verdade agentes da organização. Nossos amigos, nossas namoradas, nossos governantes e nossos cunhados podem ter sido substituídos por impostores profissionais. Talvez eu mesmo esteja fingindo escrever estas minúcias a nome e beneficio de um cliente chamado Dolina. Talvez você, que finge me ler, esteja substituindo alguém que não se atreve a confessar que os mitos de Flores já estão enchendo o saco.

2- Os governos, do mesmo modo que as pessoas particulares, vivem preocupados pela opinião dos de fora. Continuamente sugerem à população a necessidade de melhorar o que se chama imagem exterior.
Para consegui-lo, promove-se a difusão de nossos aspectos mais brilhantes. Quando nos visitam os estrangeiros, lhes mostram nossos recantos mais apresentáveis, dão-lhe um pastel e lhes obrigam a escutar a orquestra de Osvaldo Pugliese.
A exaltação dos nossos méritos vai quase sempre acompanhada de um cuidadoso dissimulo de nossos defeitos. Além disso, com o objeto de aparentar e faltando estrangeiros, se acostuma dar bandeira ante os próprios conterrâneos.
Com toda insistência, se assinala que os médicos argentinos são os melhores do mundo, para não mencionar os doentes. Quando se produz algum defeito em uma transmissão internacional, os locutores se apressam a esclarecer que o problema se originou no satélite alemão, com o qual ficamos tranqüilos.
A atitude temerosa do julgamento alheio é proverbial no jornalismo. Há pouco tempo uma cronista aproveitou sua passagem por Roma para consultar os transeuntes italianos acerca de nossa nova situação institucional. Os telespectadores receberam várias reflexões, expressadas em geringonça que, em geral, nos perdoavam a vida. Ao final da enquete, a cronista não podia ocultar a sua satisfação. Havíamos passado a difícil prova de agradar os sorveteiros da Via Marguta.
Não estaria mal recorrer ao Serviço de Ajuda ao Impostor para aperfeiçoar nossas representações perante estranhos.
A solvência da organização nos permitiria aparentar qualquer coisa: que temos 100 milhões de habitantes, que somos prósperos, que somos poderosos. Poderiam editar censos adulterados e mapas fraudulentos que nos mostrem no dobro da nossa extensão.
Manuel Mandeb recomendou alguma vez a conveniência de nos fingirmos o Japão, para desconcertar nossos inimigos. O pensador de Flores propunha que todos nos esticássemos os olhos com os dedos e falássemos pronunciando os “erres” como “eles”.
Assim nos alcança uma dúvida: não será que outros países já nos estão enganando? A citada potência norte-americana pode ser nada mais do que uma ficção criada pelos impostores do Norte. Talvez Suécia seja um país tropical, mas dissimula. Quem sabe a União Soviética seja uma pequena república da África e Luxemburgo é na verdade o maior país do mundo.
Em todo caso, antes de encarar qualquer ação para melhorar a nossa imagem exterior, é indispensável decidir qual é a sensação que queremos deixar. Se dispersarmos os nossos esforços em simulações diferentes e desconectadas, os resultados serão mais bem confusos. Diga-se de uma vez o que fingiremos ser: uma nação tranqüila? Uma nação exaltada? Uma nação limpa? Uma nação anglo-falante?
Os tratadistas reconhecem três tipos de impostura: horizontal, ascendente e descendente. A última consiste em se mostrar pior do que é. E não faltam economistas que postulam este caminho para despertar a comiseração internacional.

3- Os teóricos mais barrocos do Serviço acreditam que a impostura é uma arte. E mais ainda: afirmam que toda arte é uma impostura. Cem gramas de pintura ao óleo nos aparecem com um rosto misterioso ou como uma paisagem lunar. Quinhentos gramas de bronze pretendem ser o corpo de Hércules. Uma curiosa combinação de tintas e papéis é apresentada como a alma de um homem atormentado.
Somente a música está livre de simulações. Um acorde em mi menor é precisamente isso e não pretende ser nada mais.
Os teóricos também defenderam o caráter ético da impostura ascendente. O argumento principal não é novidade: de tanto aparentar bondade, a gente acaba sendo bom.
Falta nesta monografia dados concretos que permitam ao leitor a contratação do Serviço. Lamentavelmente não é possível fornecê-los.
Para começar, ninguém sabe qual é a localização da entidade. Às vezes o local assume o aspecto de um armazém. Outras vezes, aparece como um bar ao passo, ou como uma estação ferroviária. Os impostores são sempre conseqüentes com as suas representações e por mais que lhes expliquemos as nossas necessidades, insistem em vender feijão, servir genebra ou despachar uma passagem de ida-e-volta a Caseros.
É verdade que freqüentemente aparecem impostores oferecendo seus serviços. Mas a organização já advertiu ao público que se trata na verdade de falsos impostores que devem ser denunciados à polícia.



4- Sabe-se lá quantos ridículos passos de dança teremos feito nós para agradar polacos e coreanos.
Estaremos bem? Não seremos uma nação fora de lugar? Que pensarão de nós estes visitantes holandeses? Gostou de nossa estrada, senhor Smith? Cuidado dissimule que aí vem um francês! Não estaremos destoando no concerto internacional?
Eu acredito que talvez não importe destoar num concerto que parece dirigido pelo Diabo.
Vale a pena tentar o caminho difícil, o mais penoso, o mais longo, mas também o mais seguro. É o caminho da verdade. Quem queira parecer honesto, que o seja. Quem queira fama de valente, que ganhe à força de coragem. E se queremos que o mundo pense que somos uma grande nação, saibamos que o mais conveniente é ser deveras uma grande nação.
Enquanto chegam esses tempos, poderíamos começar a fingir que não fingimos.



Pactos diabólicos en Flores



Pactos diabólicos em Flores
Alejandro Dolina

Os Homens Sábios asseguram que nos velhos tempos, o demônio e seus subalternos passeavam com freqüência pelo bairro de Flores. Depois do anoitecer, na praça e na estação, rondavam nobres e plebeus infernais.
Asmodeo, inspirador do jogo, visitava os antros.
Baal- Fagor auspiciava inventos e descobrimentos perversos.
Uzza e Azael ensinavam às mulheres a se maquiarem para acender a luxúria dos homens.
E também espreitavam Astaroth, Belial, Samayaza, Yekun e Belzebu, o senhor das moscas.
O próprio Satã parava numa leiteria da Rua Artigas.
O aspecto dos demônios permitia confundi-los com cidadãos vulgares. E na verdade, isto é o que acontecia geralmente. Só os muito sagazes alcançavam a vislumbrar os sinais que denunciam ao que vem da escuridão: a elegância em exageração, os sapatos reluzentes, o anel no dedinho, o relógio de ouro, uma unha longa e afiada, um papelzinho na abotoadura do colarinho.
Suspeita-se que o propósito daquelas presenças era concretizar os pactos diabólicos.
Manuel Mandeb jurava ter visto um carro de noite, conduzido pelo Coisa Ruim. O polígrafo de Flores assustava as crianças imitando o refrão:
- Almas... compro almas... chegou a tentação, dona...
O músico Ives Castagnino mostrava um contrato de pragmática imprimido na gráfica do Averno. Lá se estabeleciam as condições gerais do pacto e as obrigações do aspirante que eram treze.

1) Renegar de Deus
2) Blasfemar continuamente
3) Adorar o diabo
4) Usar qualquer meio para não procriar
5) Jurar em nome do diabo
6) Comer carne
7) Imaginar que tem comércio carnal com o diabo
8) Levar sempre consigo a imagem do diabo.
9) Lavar a cara e pentear de quatro em quatro dias
10) Tomar banho a cada quarenta e dois dias
11) Mudar de roupa a cada cinqüenta e sete dias
12) Barbear a cada noventa e um dias
13) Não cortar nem limpara as unhas jamais e comer a cada quatro horas quatro dentes de alho.

Aceitar um pacto com o demônio significava sempre a entrega da alma.
Suspeita-se que em Flores algumas pessoas foram efetivamente tentadas e alcançaram a estampar assinaturas sangrentas para legalizar a sua perdição.
O advogado Antônio B. Ávila foi acusado muitas vezes de facilitar seu escritório e os papéis carimbados para estes convênios abomináveis. Se bem a venda de almas se mantinha no maior segredo, chegaram a nós os nomes e histórias de alguns condenados por própria vontade.
Não se trata – confessemos – de casos ilustres, como o do doutor Fausto, o padre Urbain Grandier e o pintor bávaro Christoph Haizmann. Mas vale a pena conhecer estes modestos contratos infernais, nem que seja para aprender a esquivar os enganos do Adversário.


O ACORDEONISTA ANSELMO GRACIANI
Os músicos que pactuam com o diabo, alcançam sempre uma dimensão genial. Não acontecia assim com Anselmo Graciani. Sua exigência frente a Lúcifer foi poder tocar como desejava e sonhava, e os anelos musicais de Graciani eram vulgares. É verdade que despachava a variação de Canário em Paris com os olhos fechados. Mas, além dos floreios acrobáticos, seu estilo era banal e relaxante, atacado por desnecessários enfeites de aniversário.
Alcançou sucesso e renome em certos ambientes. Ives Castagnino chegou a tocar em sua orquestra e aprendeu a odiá-lo.
Dizem as más línguas que Graciani pagou o dom recebido tocando eternamente no Tártaro, para suplicio – ou desfrute – dos condenados.

DIÁLOGO ENTRE ASMODEO E O RUSSO SALZMAN
Asmodeo: Sou Asmodeo, inspirador de jogadores e dono de todas as fichas do mundo. Conheço de memória todas as mãos que se repartiram na história dos baralhos. Também conheço as que se repartirão no futuro. Os dados e as roletas me obedecem. Minha cara está em todos os naipes. E possuo a cifra secreta e fatal que somarão todos os seus pôqueres quando chegar o fim da sua vida.
Salzman: Não quer jogar um baralho comigo?
Asmodeo: Não, Salzman. Venho te oferecer o triunfo perpétuo. Somente com me adorar ganharás qualquer jogo.
Salzman: Não sei se quero ganhar
Asmodeo: Imbecil! Por acaso quer perder?
Salzman: Não, também não quero perder
Asmodeo: Então quer o quê?
Salzman: Jogar. Quero jogar, mestre... joguemos uma partida.


RUBEN GARMENDIA, O BEIJA-FLOR
Não parecia mau negócio o de Garmendia. Garantiram-lhe o amor de todas as mulheres. O tormento eterno era, sem dúvidas, um preço razoável. Todos o recordam em Flores passeando com as mulheres mais belas da cidade.
Segundo contam, as moças o seguiam pela rua. Nos botecos, se aproximavam à sua mesa para se oferecerem redondamente. Muitas vezes devia se atirar dos ônibus, fugindo do ardor das passageiras. Seus amigos o abandonaram temerosos de que seduzisse suas namoradas.
Irma Joana Inês da Cruz sentenciou que o amor é como o sal: faz mal sua falta e seu excesso.
Garmendia suportou como ninguém a segunda desdita.
Suas amantes não se resignavam à sua ausência e se apareciam em sua casa chorando e atirando pedras nas janelas. Em suas últimas épocas era visto perseguido por multidões de damas sem consolo que puxavam seu paletó.
Para completar a sua desventura, se apaixonou de uma vizinha e já não precisou da paixão das outras mulheres. Soube, além disso, que a moça o amava desde sempre, desde antes do pacto.
Compreendeu então que Satã é um trapaceiro.
Sabe-se que tentou dissolver o vínculo, mas é pouco provável que tenha conseguido.
Um marido ciumento o assassinou um dia 25 de maio.

O HOMEM QUE ERA, SEM SABÊ-LO, O DIABO
Um cavalheiro da Rua Caracas resolveu negociar a sua alma. Seguindo os rituais alcançou a convocar a Astaroth, membro da nobreza infernal.
- Desejo vender a minha alma ao diabo – declarou
- Não será possível – respondeu Astaroth
- Por quê?
- Porque você é o diabo.

O PEQUENO PACTO DE MANUEL MANDEB
Não foi fácil ao diabo tentar Manuel Mandeb. Para começar, cada vez que se aparecia, o homem continuava correndo sem dar tempo a apresentações nem propostas. Um dia, disfarçado de ferroviário, conseguiu captar a confiança do polígrafo e finalmente lhe propôs o pacto de sempre.
- Na verdade eu gostaria de obter o amor de uma certa senhorita. Mas não creio que valha uma alma. É de escassa estatura.
- Posso lhe dar esse amor e também riquezas e louvores, para completar a diferença.
- Tenho uma idéia melhor – gritou Mandeb. – Conceda-me esse amor. Em troca eu cometerei quatro iniqüidades, que talvez sejam suficientes para me condenar. Discutiram durante longo tempo. Satanás aceitou sem entusiasmo o pequeno pacto, que assinou com tinta comum. As quatro iniqüidades foram estabelecidas por escrito e eram estas:
1) um latrocínio.
2) uma blasfêmia
3) uma traição
4) a quarta iniqüidade foi identificada pelo propósito do pacto. Fazer-se amar por alguém e não dar a alma em troca é, certamente, uma canalhada.
A força de generosidades e arrependimentos, Mandeb foi emparelhando o peso de seus pecados, até ficar em condições de se salvar do inferno... ajustadamente.


O HOMEM QUE PEDIA DEMAIS
Satanás: O que pedes em troca de tua alma?
Homem: Exijo riquezas, posses, louvores e distinções... e também juventude, poder, força e saúde... exijo sabedoria, gênio, prudência... e também renome, fama, gloria e boa sorte... e amores, prazeres, sensações... dará-me tudo isso?
Satanás: Não te darei nada.
Homem: Então não terás a minha alma
Satanás: A tua alma já é minha (desaparece)

Alguns relatos do bairro mostram evidência de posses diabólicas. Sempre se suspeitou dos cantores de jazz, porque tinham a possibilidade de falar um idioma que desconheciam. Jorge Allen se jactava de ter uma alma inóspita e jurava que vários demônios tinham tentado usurpá-la sem agüentar mais de meia hora.
Também se falava de íncubos e súcubos que mantinham amores com pessoas desprevenidas.
Papini sustentava a impossibilidade dos contratos infernais. O diabo – dizia – não precisa de complicadas cláusulas para capturar almas. E cabe supor que um homem tão estúpido que renuncie ao céu em troca de alguns anos de fortuna já está perdido antes de assinar nada.
A mim parece adivinhar que estamos frente a uma alegoria.
Talvez não existam as cruentas rubricas nem os rituais. Mas é possível que algumas de nossas condutas sejam – em segredo – a subscrição de um acordo. Talvez muitos de nós tenhamos vendido a nossa alma ao diabo, ao preço miserável de nos sentirmos satisfeitos de nossa integridade.
Acho que hoje – como então – os demônios andam por perto. Já não têm, para nossa desgraça, o horrível aspecto que antigamente dava certa lealdade a sua malevolência. Agora aparecem amáveis e sorridentes, quando não angelicais. É difícil, muito difícil, reconhecer o diabo, adivinhar de que modo assinamos e imaginar que classe de inferno nos espera.
Gostaria de pensar que as almas puras alcançam a perceber uns pálidos sinais. E assim como muitos pactuam sem sabê-lo, outros sem sabê-lo não pactuam.
O céu nos proteja dos demônios, de seus empregados, de suas vítimas e dos malvados que vivem convencidos de sua bondade.




La Ciencia en Flores




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A ciência em Flores
Alejandro Dolina

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Os Refutadores de Lendas sustentaram sempre que toda a Natureza pode-se expressar em termos matemáticos. O pouco que resta fora, não existe.
Assim, esta orientação racionalista se esforçou, usando cifras, vetores e logaritmos, em representar coisas tais como o tango “El Entrerriano” ou os ciúmes das namoradas da Rua Artigas.
Quando fracassavam, simplesmente declaravam superstição o que não conseguiam enquadrar em suas estruturas científicas.
Existia um minucioso catálogo de coisas inexistentes que se atualizava a cada ano. Lá figuravam os sonhos, as esperanças, o bicho papão, a alma, o ornitorrinco, o quatorze de corações, o Anjo Cinzento de Flores, o gol de Ernesto Grillo contra os ingleses, o pôquer servido e a angustia.
Outra publicação venerada foi o desmesurado livro “Um Amor assim tão Grande”, resultado do desejo de medir tudo. Nesse trabalho não somente se outorgam valores numéricos a sabores, aromas e formas, senão também as sensações espirituais mais sutis.
Ao longo de cem capítulos se estabelece a quantidade de adrenalina que produz um individuo antes de ser vacinado, o volume que alcançam as lágrimas de uma mãe ao longo de sua vida, a quantidade de cera que trazem em seus ouvidos o conjunto de habitantes da cidade de Buenos Aires (suficiente, ao parecer, para lustrar todos os andares do edifício de Obras Sanitárias), e a energia que consome um suspiro.
Alguns dados produzem indignação nas almas simples: para essa gente a novela Madame Bovary consiste em certa mistura de meio quilo de papel e um quarto litro de tinta. Os elementos químicos que compõem ao homem são descritos pontualmente com seu preço nas farmácias do lugar. Deste modo chega-se à conclusão de que é mais barato um senhor robusto do que um abajur.
Não faz falta indicar o grande sucesso obtido por esta curiosa forma de avaliar o universo. Constantemente podemos ouvir no rádio as declarações de brilhantes esportistas que manifestam se encontrarem em setenta e cinco por cento, sabe Deus de quê. Os rapazes preparam tabelas de posições nas que dão a entender que querem primeiro a sua mãe, depois seu pai e em terceiro lugar à sua avó. E em quarto… de longe… o tio Juliano. Os boletins de notas não são outra coisa que a versão escolar do pensamento dos Refutadores.
A pesar de que a descrição da conduta de um aluno que não estudou sua lição se reduz a um redondo zero. Pelo contrario, um estudante talentoso e perseverante será premiado não com um carinho, nem com uma frase estimulante, mas sim com um dez.
Não se sabe se os Refutadores de Lendas escreviam cartas de amor, mas não seria estranho que suas meigas declarações consistissem em gráficos representativos do progresso dos seus sentimentos.
Todo este arrebato cientificista não pôde menos que causar repugnância nos Homens Sensíveis de Flores que confiavam mais na intuição do que na razão.
Como acontece sempre, os excessos racionais geram desaforadas revoltas românticas. Mas no bairro de Flores essa revolta não se manifestou unicamente a través da arte, senão que teve lugar – além disso – no terreno científico.
A Sociedade dos Científicos Sentimentais nasceu graças ao impulso do professor Aurélio C. Frascarelli, quem farto da desumanização das disciplinas científicas resolveu colocar um pouco de sangre ao frio mundo das raízes quadradas e das cotangentes.
Este pensador delirante fundou a sociedade antes citada e editou um Manual de Ingresso que nunca se soube se era um livro de texto ou uma coleção de tentativas poéticas.
As primeiras inovações do manual são modestas. Limita-se a uma redação mais emotiva dos problemas de regra de três composta. Transcreveremos um deles:
Problema 14: Doze homens tristes tropeçam em um ano com cento e seis desilusões. Não se conhecem entre si, mas sofrem de um modo parecido. Pergunto então: Quantas desilusões padecerão oito homens tristes em seis meses?
Como podem observar a única novidade consiste em substituir vegetais por desilusões e em certas declarações desnecessárias como o mutuo desconhecimento e a tristeza destes homens. Mas conforme se avança na leitura do Manual encontram-se coisas mais audazes. O problema 187 é praticamente uma novela curta. A descrição psicológica do protagonista – um comerciante pouco escrupuloso – está bastante bem lograda.
Há personagens laterais (um cunhado que procura um tesouro escondido) e uma divertida pintura típica de um armazém de bairro. A pergunta final (“a quanto deveria vender o quilo de arroz?) resulta insignificante ao lado de outras interrogantes que não estão escritas, mas sim sabiamente sugerida pelo professor Frascarelli: A vida tem sentido? Há algum propósito no Universo? Cumprimos sem sabê-lo com algum plano divino ou diabólico?
A partir da metade do livro, o autor começa a tomar partido arbitrariamente em árduas questões matemáticas. Paralelamente se incorporam julgamentos éticos e estéticos na explicação de teoremas e postulados. Fala-se então de paralelepípedos malandros, de esferas traidoras, de ângulos tediosos e chega a se dizer que o trapezóide é uma figura que não merece ser tomada a sério.
As questões biológicas são no Manual de Ingresso verdadeiras fantasias. A vida do paramécio é um conto de terror e Frascarelli chega a afirmar que as amebas são muito guardiães e fiéis aos seus amos.
A atividade dos Científicos Sentimentais não se reduzia à difusão do Manual. Nos anos dourados do bairro de Flores, muitos mestres românticos deram aula em uma academia particular da Rua Condarco.
Os alunos padeciam da mesma loucura dos professores. Cada vez que se realizava algum experimento no gabinete de química, os jovens saíam correndo aterrorizados, enquanto gritavam “Coisa de Bruxaria” ou “o Diabo anda solto”.
O próprio Frascarelli dirigia um grupo de investigação cujos métodos provocavam o escândalo dos Refutadores. Acreditavam, por exemplo, na busca do acaso. Este critério podia ser escrito assim: sabendo que muitos grandes descobrimentos se realizaram por acaso, parece uma boa idéia dissimular o verdadeiro propósito da investigação. Assim, quando se quer encontrar uma estrela, busca-se um micróbio. Os resultados não foram muito espetaculares, se bem Frascarelli se jactava de ter encontrado um específico que combatia o mau hálito enquanto procurava a pedra filosofal.
Em ocasiões, os científicos sonhadores acudiam à busca empírica e tomavam frascos de loções brancas, para ver o que acontecia. Estas experiências se anotavam num caderno que sobreviveu à Sociedade e no que se refere a mais de mil e quinhentas loucuras, que vão desde comer pólvora até se atirar a caída livre desde diferentes alturas para estabelecer os danos físicos e morais que, além dos quatro metros, acostumavam se traduzir simplesmente em morte.
Há que dizer que, mesmo que seus sucessos foram pequenos, os propósitos da Sociedade não tinham limites. Durante anos tentaram fazer algum milagre. Buscaram a esmeralda que cura todas as doenças, o elixir da eterna juventude, o pó de Pirlimpimpim, o xarope do amor eterno e a chave da sabedoria. Discutiram sobre a quadratura do círculo e a imortalidade do caranguejo e tentaram voltar ao passado e visitar o futuro.
Todos sabem que no bairro do Anjo Cinzento se destilava o vinho do esquecimento e o licor da recordação. Também são conhecidos perfeitamente seus efeitos e propriedades. Ao parecer, o que matava era a mistura.
Alguns mentirosos pretendem que estas maravilhas foram criadas pelos Científicos Sentimentais. Nada mais falso. O vinho foi obra dos Amigos do Esquecimento, um clube que propunha a abolição do passado. E o licor é – sem dúvidas – um achado de Manuel Mandeb, o polígrafo de Flores.
Tal como é fácil suspeitar, os científicos românticos foram derrotados pela prédica incessante dos Refutadores de Lendas.
Hoje todo mundo rende culto à Ciência Pura. E existe um ilustre paradoxo: os Refutadores não fizeram mais que substituir as velhas lendas por outras mais novas, muito piores.

Os arquitetos razoáveis poderão duvidar da existência da alma, mas assinarão qualquer teoria sobre o átomo, os nêutrons e prótons, com a maior alegria.
Não importa se entendem estas teorias. Na verdade – como diz Sábato – o pensamento científico parece ter maior poder quanto menos compreendido é. Por isso se costuma dizer:
- Que bem que ele fala! Não entendo nem uma só de suas palavras.
Quando um racionalista se torna supersticioso, não há quem lhe ganhe. Tudo parece indicar que o futuro pertence aos Refutadores de Lendas. Talvez por isso os membros dessa entidade – a única que resta das que existiram nos anos dourados – se mostram tão otimistas com relação ao que virá.
Todos os adoradores do progresso nos pintam um porvir cheio de calçadas móveis que nos evitarão o esforço de caminhar, com máquinas invictas, com rios domados, e veículos cada vez mais velozes.
Às almas simples, a descrição desses espantosos mecanismos lhes parece algo diabólico.
Porque neste projeto de aparelhos infalíveis e formidáveis fontes de energia não parece existir a menor preocupação por responder alguma das perguntas que o professor Frascarelli soube inserir no ser memorável problema 187.
A Sociedade dos Científicos Sentimentais era uma loucura. Mas talvez faça falta um pouco de loucura entre tanta exatidão e precisão.
Serão bons os cálculos e os teoremas inexpugnáveis, se é que se aplicam a losangos, ângulos e cubos. Mas começam a falhar quando se trata de pessoas. E talvez isto constitua a maior virtude do homem, seu toque divino. O último dos malandros de Flores é mais interessante do que uma estrela, somente porque seu comportamento é imprevisível.
Nada isto significa que devamos renunciar à ciência e seu arsenal.
Que continuem inventando liquidificadores e tônicos contra o catarro. Dois mais dois é quatro. Os Refutadores de Lendas têm razão. Mas nada mais do que isso: razão.
E isso a mim não me basta.



21 jun 2009

Cuentos de Eva Luna

Contos de Eva Luna
Isabel Allende


Despias a faixa da cintura, arrancavas as sandálias, atiravas num canto tua ampla saia, de algodão, eu acho, e soltavas o nó que retinha teus cabelos num rabo-de-cavalo. Tinhas a pele arrepiada e rias. Estávamos tão próximos que não podíamos nos ver, ambos absortos nesse rito urgente, envoltos no calor e no odor do que fazíamos juntos. Abria passagem por teus caminhos, minhas mãos na tua cintura encabritada e as tuas impacientes. Deslizavas-te, me percorrias, me trepavas, me envolvias com tuas pernas invencíveis, me dizias mil vezes, vem, com teus lábios sobre os meus. No instante final, tínhamos um vislumbre de completa solidão, cada um perdido em seu queimante abismo, mas logo ressuscitávamos desde o outro lado do fogo para descobrir-nos abraçados na desordem dos travesseiros, sob o mosquiteiro branco. Eu afastava teus cabelos para olhar-te nos olhos. Às vezes te sentavas ao meu lado, com as pernas recolhidas e teu xale de seda sobre um ombro, no silêncio da noite que acabava de começar. Assim me lembro de ti, em calma.
Tu pensas em palavras, para ti a linguagem é um fio inesgotável que teces como se a vida se fizesse ao contá-la. Eu penso em imagens congeladas em uma fotografia. No entanto, esta não está impressa numa placa, parece desenhada a pluma, é uma lembrança minuciosa e perfeita, de volumes suaves e cores cálidas, renascentista, como uma intenção captada sobre um papel granulado ou uma tela. É um momento profético, é toda a nossa existência, tudo o vivido e o que resta por viver, todas as épocas simultâneas, sem principio nem fim. Desde certa distância, eu vejo estes desenhos, onde também estou eu. Sou espectador e protagonista. Estou na penumbra, velado pela bruma de um cortinado translúcido. Sei que sou eu, mas eu sou também este que observa desde fora. Conheço o que sente o homem pintado sobre essa cama desarrumada, num quarto de vigas escuras e tetos de catedral, onde a cena aparece o fragmento de uma cerimônia antiga. Estou aí contigo e também aqui, sozinho, em outro tempo da consciência. No quadro, o casal descansa depois de fazer amor, a pele de ambos brilha úmida. O homem tem os olhos fechados, uma mão sobre seu peito e a outra sobre a coxa dela, em íntima cumplicidade. Para mim esta visão é recorrente e imutável, nada muda, sempre é o mesmo sorriso plácido do homem, a mesma languidez da mulher, as mesmas dobras dos lençóis e cantos sombrios do quarto, sempre a luz da lâmpada roça os seios e os pômulos dela no mesmo ângulo e sempre o xale de seda e os cabelos escuros caem com igual delicadeza.
Cada vez que penso em ti, assim te vejo, assim nos vejo, detidos para sempre nessa tela, invulneráveis ao deterioro da memória. Posso me recriar longamente nessa cena, até sentir que entro no espaço do quadro e já não sou quem observa, senão o homem que jaz junto a essa mulher. Então se rompe a simétrica quietude da pintura e escuto nossas vozes muito próximas.
- Conte uma história- lhe digo
- Como a queres?
- Conte uma história que não tenhas contado a ninguém.