As crenças no sobrenatural terminam sempre sendo abolidas pelas gestas racionalistas. No entanto, como observa Rafael Llppis, os mitos regressam do braço da arte romântica. Mas já não como puras crenças que eram antes, mas como estética. Mesmo que negados pela razão, os fantasmas se resistem a morrer.
Mas devem abandonar suas pretensões de verdade e se vêem obrigadas a se expressar num plano artístico onde reconhecem de antemão a sua condição de fantástica. Assim, o sentimento negado como crença pela razão nega, por sua vez, a razão. Mas já sendo ate, convertido no eco de algo que já não é, o mito perde força e vai se esgotando. Até aqui, Llopis. Talvez faltasse apenas um modesto condimento: a arte romântica estabelece um vínculo inexorável entre o criador e sua obra. Deste modo o artista acredita redondamente nos seus monstros ou, ao menos – como pedia Coleridge – suspende sua incredulidade. Os analistas dos mitos de Flores aplicam estes critérios para explicar a lenda do Anjo Cinzento. É possível que os vizinhos tenham acreditado alguma vez na existência certa deste miserável agente celestial. Os Refutadores de Lendas se encarregaram de desalojar a superstição. E nós recebemos – sombra de um suspiro – os restos incompletos de uma literatura de bairro que insistiu no Anjo apesar de tudo.
Onde localizar os Homens Sensíveis nestes vaivens do pensamento e da paixão? Não é fácil de dizer. Manuel Mandeb e seus amigos não eram ingênuos em absoluto. Suas ilusões não terminavam na desilusão, senão mais bem começavam por aí. Pelo que sabemos, quase nunca falavam do Anjo Cinzento.
Também não chegou até nós a constância de nenhuma polêmica acerca do assunto. Em certo modo, isto faz suspeitar uma certeza. Quem não questiona sobre a existência de algo é porque está seguro ao respeito. Claro que ignoramos se tal certeza afirmava ou negava o Anjo de Flores. Curiosamente, muito perto do silêncio dos Homens Sensíveis rendeu infinidade de textos, obra de artistas da vizinhança, nos que se contava toda classe de estórias nas que aparecia o anjo. Dela se extraiu toda a informação que possuímos agora sobre esta figura desbotada, a mais importante, mas também a mais longínqua nos relatos de Flores.
Repassemos alguns aspectos do Anjo Cinzento nos que coincide a maioria dos autores consultados. O Anjo era invisível. Sabe-se, no entanto, que usava uma túnica cinzenta e que suas asas estavam um pouco sujas. Seus poderes eram escassos, como expressa uma antiga balada: “O que pode oferecer um anjo que não seja fantasia ou algum humilde milagre de quarta categoria”. Acredita-se que havia sido castigado por alguma transgressão. Seu pecado deve ter sido também humilde, pois não havia nada satânico em seus procedimentos. Era serviçal, mas todos procuravam evitar sua ajuda. Por alguma razão, o Anjo acreditava que a melancolia e o desencontro eram coisas desejáveis e então recompensava seus enteados com tristezas permanentes. Já se disse que odiava os automobilistas e por isso interferia no funcionamento dos semáforos. Sempre gostou das canções tristes. Às vezes ditava composições ao músico Ives Castagnino. As loiras da rua Caracas já ouviram serenatas angelicais que pareciam surgir da sombra ou do nada. Participava em todas as brincadeiras do bairro. O russo Salzman afirmava que a probabilidade de fazer sete no jogo de dados era duas vezes maior em Flores do que em qualquer outro lugar. Carlos Menéndez, um conhecido malandro da rua Bolívia, jurou que em dez anos de atividade em toda partida de naipes do bairro, jamais conseguiu um sete de ouros, carta que recebia com razoável freqüência em Caseros ou em Palermo.
Repartia sonhos desde o anoitecer até a alvorada, levando uma cesta de padeiro. Não lhe estava permitido sair de Flores. Os duendes, fantasmas e demônios de outros rumos caçoavam dele.
Sem pretensão de antologia, trazemos ao conhecimento público alguns textos e dados biográficos dos escritores obscuros que se ocuparam do Anjo Cinzento
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RICARDO PEREZ BRUNETTO:
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Manuel Mandeb costumava se jactar de ter esquecido a teoria da relatividade, quando na verdade jamais a havia conhecido. Nesse mesmo sentido, Pérez Brunetto, com fingida amargura, dizia que era um escritor esquecido: jamais alcançou semelhante posição. Pese a tudo isso, alguns dos seus contos impressionaram suas primas a limites que o próprio artista tratou de ocultar.
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CARLOS Y AMELIA:
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O primeiro coração encontrou-se pintado na parede frente à sua casa. Em seu interior, entre adornos, lia-se “Carlos e Amélia”. Mesmo que se chamasse Carlos, ele não se deu por aludido, pois não conhecia nenhuma Amélia. O segundo o impressionou um pouco mais. Estava desenhado a dedo limpo na vitrine do bar “Tio Friz”. Ao terceiro coração compreendeu que o assunto era com ele. Apareceu de repente ao descolar do armário uma foto de Laura Hidalgo. Depois começou a encontrar corações por todas partes: no banheiro do estádio de Vélez, detrás do almanaque de uma tinturaria, num velho caderno e na árvore da praça, a uma altura impraticável para qualquer apaixonado.
Não custou muito em suspeitar algo prodigioso. Nenhum dos seus amigos tinha a astúcia nem o afinco para uma brincadeira semelhante. O último coração se apresentou numa pipa que acabavam de arriar e que carecia de qualquer inscrição ao ser levantada. Havia sido desenhado no céu.
Dias mais tarde, Carlos conheceu a Amélia. Era linda, mas triste e fria. Economizaremos trâmites literários se dizemos que se apaixonou por ela. Ficou sabendo onde morava, fingiu encontros casuais, tratou de interessá-la de cem diferentes maneiras. Finalmente lhe confessou seu amor, suplicou, se humilhou, mas a mulher não prestou atenção. Não deve haver existido jamais uma rejeição tão inapelável como aquela.
Depois disso já não apareceram novos corações. Carlos não viu Amélia nunca mais, mas por sua culpa envelheceu sem amores. Um dia soube por uma bruxa que o Anjo Cinzento prepara esses acontecimentos para que alguns privilegiados vivam a rara experiência do amor impossível. E uma tarde, passeando em frente à casa abandonada da mulher, descobriu apagada, a sombra de um coração pintado sob a janela. Entre adornos lia-se “Amélia e Ernesto”
RUBEN DI LEO:
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Centro avente do clube Empalme San Vicente. Não era literato, mas escreveu um extenso volume titulado “Minhas Melhores Jogadas”, no que relatava em estilo insufrível mais de mil e quinhentas ações futebolísticas nas que aparece como protagonista.
Uma delas é de certo interesse para nós: Jogada 304 Perrone chutou o escanteio desde a esquerda. Perdiamos um a zero e faltavam dois minutos. O tiro saiu alto demais. Eu estava na área, mas nem pensei em pular. De repente, senti que umas mãos ardentes me pegavam da cintura e me elevavam pelo ar. Assim alcancei uma altura fenomenal, quase um metro por cima dos defensores. Misteriosamente, minha cabeça bateu na bola. As mãos me soltaram e caí desparramado. Achei que tinha escutado o rumor de umas asas, mas foi muito mais forte o grito de gol da arquibancada. Desde esse dia, quando há escanteio, procuro chutar eu.
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IVES CASTAGNINO:
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O mais famoso dos músicos de Flores e de Palermo. A valsa que transcreveremos foi ditada, segundo dizem, pelo próprio Anjo que além disso costumava cantá-la ao fazer cada noite a entrega domiciliar de sonhos:
O reparto de sonhos (fragmento)
Sonhos vermelhos, azuis e verdes. Tenho sonhos de todas as cores. Sonhos brancos e sonhos rosados para todas as meninas de Flores
Há um sonho tão longo que ao sonhá-lo a vida se esvai. E um curtinho que é como um suspiro. Quem o sonha, sonha que suspira.
Nesta cesta eu trago, senhores, os sonhos famosos do bairro de Flores.
Tenho um sonho dourado, impossível. Tao belo que todos o querem. E outro negro, perverso, terrível: quem não acorda morre.
Tenho aqui, para das aos pobres, luxuosíssimos sonhos reais. São os mesmos que sonham os reis, aos sonhar, somos todos iguais.
Nesta cesta eu trago, senhores, os sonhos famosos do bairro de Flores.
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LUNCHEON TICKET:
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Pseudônimo anglófilo que usava o Dr. Pelagio Faggiolo para escrever novelas policiais. Em seus relatos é elementarmente simples descobrir o assassino em virtude dos adjetivos que lhe atribui (por exemplo: o infame senhor Galveston)
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OS SEIS QUE SE SIGUEM:
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Harry, o ladrão simpático, estava cercado. Os seis detetives mais ilustres do mundo estavam na cidade, convocados para a caceria. Philo Vance, J.G.Reeder, Ellery Queen, Philip Marlowe, Sherlock Holmes e o padre Brown logo começaram seu trabalho. No entanto, o Anjo Cinzentod e Brooklyn acudiu em sua ajuda.
Vance recebeu uma ordem misteriosa e inapelável para seguir Reeder. A Reeder lhe ordenaram seguir Queen. Queen recebeu ordens de seguir Marlowe. Marlowe tinha que seguir Holmes. A Holmes disseram que devia seguir ao padre Brown. Finalmente o padre Brown foi comissionado para seguir Vance. Poucas horas depois os seis estavam imóveis numa praça espreitando-se mutuamente e esperando um primeiro passo que ninguém ia dar. Harry, o ladrão simpático, cometeu alguns delitos e depois começou uma nova vida num país longínquo. Os seis detetives continuam em Brooklyn atolados como universo imóvel que espera uma Vontade.
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NITO D'ALESIO:
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Literato aficionado de Monte Carlo. Foi empregado municipal, como o permite deduzir seus manuscritos, sempre estampados no revés de formulários da prefeitura.
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A RUA DO BEM E DO MAL:
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Como bem sabemos, a quadra do Anjo Cinzento está na rua Artigas, entre Bogotá e Bacacay. Acontece por lá uma coisa muito particular: numa das calçadas não é possível ser bom. Na outra é impossível ser mau. Uma noite passei com uma moça loira pela calçada oeste. Encurralei-a num portal escuro, a beijei com paixão e consegui possuí-la aí mesmo. Depois atravessamos a rua. E enquanto caminhávamos pela calçada oriental, lhe pedi que me esquecesse e abandonasse para sempre. Na quadra do Anjo Cinzento há duas calçadas. Numa não é possível ser bom, na outra não podemos ser maus. Ainda não tenho claro qual é qual.
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Há em nosso poder muitíssimos outros textos, todos com o mesmo escasso interesse.
Nestes dias ninguém se preocupa do assunto. Os Homens Sensíveis se dispersaram e as pessoas razoáveis prevalecem em Flores e no mundo inteiro. Talvez o próprio Anjo Cinzento, lá nos desolados campanários, cantará essa velha copla que convida a durar.
Os que não sabem sonhar, dizem que nunca me viram, e até eu mesmo suspeito que, quem sabe, não existo.
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