23 nov 2009

El psicoanálisis en Flores


A psicanálise em Flores
Alejandro Dolina

A história da psicanálise no bairro de Flores é bastante curiosa. Quem conhece os Homens Sensíveis já suspeita que as teorias de Freud não foram formuladas pensando neles. E mesmo que esses varões sempre foram aventureiros e buscadores de sonhos, custa bastante imaginá-los no divã de um psicanalista.
No entanto, muitos profissionais alcançaram sucesso no bairro do Anjo Cinzento. Alguns foram consultados pelos Homens Sensíveis e até existiram escolas e correntes opostas que deram lugar a apaixonantes polêmicas.
O primeiro analista que se estabeleceu em Flores foi – conforme dizem – o doutor Mauricio D. Finkel. No inicio não foi fácil e seu consultório da Avenida Rivadavia permaneceu deserto durante meses. Os vizinhos pensavam entender que Finkel adivinhava a sorte ou abria as cartas ou talvez vendesse rifas. Com essa idéia se apresentou um dia de inverno o primeiro dos seus pacientes.
Tratava-se do poeta Jorge Allen, que procurava consolação de uma desilusão amorosa e pensou que não estava mal tentar alguma solução mágica. Finkel o fez deitar no divã e o convidou a falar. Allen contou minuciosamente que fora abandonado por certa senhorita de La Paternal, a forma em que sofria e outros detalhes menores. Transcorrido o tempo, Finkel se levantou e deu por terminada a entrevista.
- E aí? – disse Allen – faço o quê?
- Venha quinta-feira à mesma hora.
- Para quê?
- Veja, o tratamento procura que o senhor vá compreendendo seu próprio problema. A solução o senhor vai encontrar nessa mesma compreensão.
Allen voltou várias vezes. Compreendeu perfeitamente seu caso, coisa que não lhe serviu de nada: a moça de La Paternal casou-se com um consignatário de Alberti. Ao saber desta tragédia, o apaixonado anunciou a Finkel sua decisão de interromper o tratamento.
- O senhor não entende – sentenciou o analista -; o ponto é colocá-lo frente à realidade para aceitá-la e superar a sua dor.
- Não desejo superar a dor. Já perdi a mulher que eu amava. O senhor pretende me deixar também sem o sofrimento? Diga-me quanto estou lhe devendo.
Apesar deste primeiro fracasso, Finkel fez carreira.
Quando os Homens Sensíveis souberam da teoria do subconsciente, acreditaram encontrar-se frente a uma belíssima lenda.
Na praça, os Narradores de Histórias surpreendiam o auditório manifestando que todos levavam por dentro outro senhor, quem na verdade é que domina o nosso ser.
Diziam também que este senhor oculto aparecia nos piores momentos, pondo nas nossas vidas notas de luxúria, bestialidade e grosseria.
A lenda do subconsciente foi-se transformando vigorosamente e algumas de suas versões são assombrosas.
Durante muito tempo acreditavam em Flores que toda ação indecente era responsabilidade do subconsciente, ficando a salvo a inocência de quem a perpetrasse. Deste modo, os mal-educados da área justificavam seus gritos, safadezas e provocações culpando o estranho que levavam por dentro.
As pessoas decentes e retas se jactavam de não ter subconsciente e muitos pais ameaçavam seus filhos com marcar a extirpação cirúrgica do intruso responsável por suas travessuras.
Manuel Mandeb afirmou uma madrugada que ele tinha vários subconscientes, a maioria dos quais estavam contra ele.
Quase nos confins de Villa del Parque, alguns grupos de fanáticos acreditaram que o subconsciente saía da sua embalagem carnal nas noites de lua cheia para cometer toda classe de perversidades.
Seja pelo auge desta lenda, seja pelo trabalho de grupos de fedelhos procedentes do centro, o caso é que o doutor Finkel e alguns outros psicanalistas chegaram a dispor de uma regular freguesia.
Os Refutadores de Lendas não se opuseram a esta atividade, pois tinham ouvido dizer que se tratava de algo científico.
Também é verdade que não concorriam aos consultórios, coisa que é uma pena: não deve haver nada mais apaixonante do que os sonhos de um racionalista.
Com o aparecimento de novos profissionais, começaram também os diferentes focos, as heresias e as discussões. Finkel era ortodoxo: não dialogava com seus pacientes, punha-se fora de suas vistas e não lhes permitia que o olhassem. Seus inimigos afirmavam que o homem aproveitava para dormir.
Outros asseguravam que ele ia à cozinha e voltava sobre o final da sessão. E não faltavam os que pensavam que atendia duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, dando voltinhas de inspeção entre quarto e quarto.
Outros psicanalistas preferiram enfrentar seus fregueses e discutir com eles.
Uma vertente da Rua Bilbao levou esta atitude ao extremo. Assim nasceu a Escola Psicanalítica da Desesperação.
Os médicos que seguiram esta nova técnica se propunham reagir ante o relato do paciente de um modo evidente e até exagerado, para que o doente compreendesse que era compadecido.
Por exemplo: se um senhor contava que estava cheio de sua esposa, o analista chorava amargamente até cair na desesperação. Claro que esta terapia teve, algumas vezes, conseqüências desagradáveis.
Assim, quando alguém contava que castigava seus filhos, não faltava o psicólogo desafiante que se enfrentava ao paciente e gritava: “Por que não bate em mim, sem-vergonha!”
As atividades da Escola Psicanalítica da Desesperação cessaram, mas do que nada, por causa das queixas dos vizinhos. Um negócio bastante interessante foi o dos psicanalistas a domicilio.
A idéia surgiu a partir da forte necessidade que muitos pacientes tinham de seus analistas a toda hora.
Certos neuróticos com grana pensaram que uma boa solução era contratar um psicoterapeuta de modo permanente. Então se fez bastante freqüente o costume de ter um analista em casa, que – de passagem – eliminava a chateação de se submeter a uma sessão, pois não tinha maior sentido contar ao profissional o que ele podia ver com seus próprios olhos.
A verdade é que, no caso dos psicanalistas ortodoxos, sua função no domicilio do doente não era muito mais ativa do que a de um vaso de flores. Limitavam-se a percorrer os cômodos murmurando “hemmm” e afirmando com a cabeça.
Muitos deles ainda continuam nas casas das famílias acomodadas, alguns como jardineiros, outros como primos ou enteados.
O auge da atividade psicanalítica no bairro de Flores popularizou suas técnicas mais simples. Qualquer costureira sabia o que era o complexo de Édipo ou uma neurose obsessiva.
Os Homens Sensíveis se sentiram fascinados pelo jogo da interpretação. Para eles não se tratava de um exercício científico, senão artístico. E não lhes faltava razão.
Alguém deixa um guarda-chuva esquecido no bar La Pilarica.
Interpretação: existe o desejo de voltar ao estabelecimento.
Alguém conta piadas o tempo todo.
Interpretação: há uma tristeza oculta.

Alguém sente horror pelos facões.
Interpretação: Houve um acidente na infância.
Claro que os poetas cunharam interpretações novas muitas delas de alto valor literário.
Vejamos:
Alguém mete o dedo no nariz.
Interpretação: Está à procura de sua alma.
Uma mulher é bela demais
Interpretação: Trata-se do demônio.
Um homem afia sua faca no meio-fio:
Interpretação: Vingança certa.
O mesmo mecanismo observa-se na interpretação dos sonhos. De acordo com os Homens Sensíveis, sonhar com uma mulher é amá-la, sonhar com sapatos pretos é morrer, sonhar com cair é o cinqüenta e seis.
Outra das conseqüências desta vocação psicológica foi a convicção geral de que tudo tem origens mentais.
Assim, quando um rapaz espetava um prego no pé, alguns médicos aplicavam a vacina para o tétano e outros perguntavam pela relação do espetado com seus pais. De qualquer maneira, o entusiasmou foi decaindo. Talvez o principal responsável foi Manuel Mandeb.
O pensador árabe começou a desconfiar de quem tratava de abranger a alma com deficientes definições. Não gostava também da ausência do pecado naquelas construções onde não havia canalhas, senão doentes, e onde os sem-vergonhas eram chamados de psicóticos.
Destas inquietudes surge uma obtusa monografia titulada “Loucos éramos os de antes”. Na verdade, o trabalho consiste na exposição de cento e nove casos de pessoas que concorreram ao psicanalista, sem se curarem de nada e – o que é pior – adquirindo uma espantosa satisfação de si mesmos.
A verdade é que o trabalho de Mandeb carece de todo rigor científico, mas consegue deixar a estranha sensação de que à psicanálise tampouco lhe sobra este rigor. Isto é talvez falso.
Mas a gente não termina de se convencer, tal é o efeito que os pensadores apaixonados, como Manuel Mandeb, produzem nas pessoas razoáveis.
Hoje em dia, suponho eu, os grandes investigadores da alma transitaram outros cominhos menos pitorescos. Já não parece ter muito sentido contar nossas fantasias a um senhor durante vinte e cinco anos para ver se conseguimos dormir tranqüilos.
Meus amigos ilustrados contam que há novas técnicas e que a ciência avança em forma brutal.
Como queira que seja, o simples propósito desta nota foi chamar a atenção sobre aspectos estéticos da psicanálise. Não importa que não sirva para nada: seus rituais, suas aristas absurdas, seus tiros na noite, suas metáforas, sua solenidade são elementos que um verdadeiro artista não deveria desestimar jamais.
Talvez eu chegasse tarde e todos já compreenderam isto.
Talvez os terapeutas e seus pacientes não façam nada mais do que brincar, semana a semana, um jogo apaixonante em que as fichas são sonhos, ilusões, fantasias, lembranças, angustias, amores, desencontros e frustrações.
Isto é quase tão bom quanto curar manias de perseguição.



Historia de la manzana misteriosa de Parque Chas



História do quarteirão misterioso do Parque Chas
Alejandro Dolina

Existe no bairro do Parque Chas, um quarteirão limitado pelas ruas Berna, Marselha, La Haya e Genebra. Não é possível dar a volta nesse quarteirão.
Se alguém tentar, aparecerá em qualquer outro lugar do bairro, por mais que tenha observado o método rigoroso de girar sempre à esquerda ou sempre à direita.
Muitos investigadores tentaram a experiência formando grupos numerosos. Os resultados foram desalentadores. Às vezes acontecia do passeante continuar na mesma rua mesmo depois de virar na esquina.
Em 1957, um grupo de exploradores franceses desembocou inexplicavelmente na estação Villa Urquiza.
Urbanistas catalães provaram sorte formando duas equipes e partindo cada um em direção oposta. Em qualquer quarteirão da cidade é fatal que os grupos se encontrem na metade do recorrido. Mas neste lugar não acontece semelhante coisa e até deu-se o caso de que uma equipe alcança a outra por trás.
Os mais teimosos realizaram excursões a través dos fundos das casas, com o resultado de aparecer sempre deixando atrás de si, ruas que não tinham atravessado jamais.
Nestas experiências descobriu-se que muitos vizinhos são incapazes de indicar a rua onde moram. Também existem casas que não dão a rua nenhuma. Seus habitantes se alimentam dos próprios cultivos ou do que generosamente lhes entregam por sobre o muro.
Os taxistas afirmam que nenhum caminho conduz à esquina de Ávalos e Cádiz e que, portanto, é impossível chegar a esse lugar.
Na verdade, convém não chegar perto do Parque Chas.

La Academia del Humor en Flores




 A Academia do Humor de Flores
Alejandro Dolina


Os Homens Sensíveis de Flores gostavam do humor, mas só um pouco. No fundo suspeitavam que o riso costuma esconder a covardia. E sentiam que os momentos verdadeiramente grandes da vida não suportavam bem as palhaçadas.
Um pouco de razão tinham: muitas vezes uma piada oportuna serve para evitar uma confissão ou um beijo. Os tímidos timoratos provocam o sorriso de seus inimigos para evitar os murros.
Ser engraçado não é simples, mas é muito mais seguro do que ser corajoso. De todos os modos, os rapazes do Anjo Cinzento cumprimentavam com suas melhores gargalhadas as idéias felizes, desde o ambicioso paradoxo até o modesto cascudo sub-reptício.
Pouco a pouco, a destreza humorística acabou por gerar – já que não o respeito – ao menos certo prestigio mundano que permitia o ingresso gratuito aos churrascos, aniversários saraus e batizados do bairro.
Naturalmente, quando as multidões alcançaram a vislumbrar as vantagens de possuir uma técnica festiva, surgiram por toda parte, jovens aspirantes que se postulavam para referir a história do camponês que estava apressado pra ir pro fundo.
A Academia do Humor em Flores ofereceu conhecimentos ordenados e oportunidades profissionais a muitíssimos simpáticos. A entidade alcançou a forjar um estilo austero e gozador, ainda hoje reconhecível em renomados locutores, jornalistas, desenhistas, escritores, atores, ou simples brincalhões particulares.
Macedônio Fernández dizia que o humor é surpresa intelectual.
A frase não define o gênero, mas o exerce. E é também uma amável recomendação do imprevisto. Neste sentido, os professores da Academia insistiam em que a pilhéria deve ser esporádica. O humorista que estende armadilhas cômicas a cada duas frases termina deixando no público uma saciedade mental da que não se consegue sair senão à mercê do tédio.
Nas aulas ensinavam a manter longos períodos de calma e seriedade, que não eram mais do que o fundo escuro destinado a ressaltar o brilho de uma brevíssima piada.
Quanto mais avançava o aluno nos cursos, mais paciente ficava e mais extensos os espaços sem brincadeiras.
Certamente alguns discípulos levaram este critério ao extremo. Às vezes escreviam longas novelas de aventuras que não eram mais do que um pretexto para uma só piada. E em certos casos, já seja por esquecimento ou por decisão artística, omitia-se totalmente qualquer troça.
Talvez muitas das obras que hoje lemos com inocência não sejam outra coisa que a desmesurada preparação de uma piada genial abolida no último instante.
O ambiente da Academia era severo e protocolar. O jeito dos professores evitava qualquer gesto familiar ou amigável. Permito-me notar nesta conduta um aspecto de inteligência fenomenal: o efeito de uma piada é tanto maior quanto mais adusta é a circunstância em que é formulado.
Um simples pum pode ser glorioso durante o discurso de um escrivão. O mesmo recurso, numa ceia de formandos ou um estádio de futebol resulta apenas em uma grosseria.
Durante os primeiros anos de cursos, procurava-se afastar os alunos da tentação da ocorrência fácil. Quem se deixava arrastar padecia severos castigos, quando não a expulsão sumária.
As apostilas e textos da Academia que chegaram até nós apresentam longas listas de recursos humorísticos desaconselhados. Um extenso capítulo rejeita o sentido duplo, que consiste em expor um objeto qualquer como se de verdade fizesse referência a uma parte comprometida do corpo humano: “Gostoso o panetone da tua irmã!”
Também se proibia o anacronismo, os jogos de palavra, as piscadelas entre parênteses, as rimas com os sobrenomes, as brincadeiras sobre políticos incultos, os nomes safados em japonês e o desafio de adivinhar como chamam a este ou aquele funcionário.
Ao final das recomendações nos espera uma frase edificante: “Convém não utilizar estes mecanismos vulgares, exceto que você seja um gênio, o que na verdade não acontece quase nunca”.
Circulavam entre os apêndices, um caderno de exercícios muito curioso. Continha numerosos inícios de comentários humorísticos que os alunos deviam completar de acordo à sua imaginação. Vejamos alguns:

Completar as seguintes piadas safadas:
1- Conversam no inferno um alemão, um japonês e um argentino. O alemão declara:
- Eu estou aqui porque assassinei um vizinho...

2- Um casal de namorados se encontra numa varanda. No melhor momento aparece o pai da moça e diz:
- Mas o que é isto?

3- Um inspetor chega a um colégio e começa a interrogar as crianças.
- Me diz você. O que pensa ser quando for grande?

As invenções dos alunos jamais eram aprovadas. Ao final do caderno e depois de infinitas frustrações, o jovem postulante compreendia ou recebia por escrito uma noção fundamental: o mundo não suporta mais as piadas safadas.
Talvez a matéria mais importante dos cursos da Academia tenha sido “Vida Humorística”. A idéia era produzir situações engraçadas reais, além das criações artificiais. Diz-se o russo Salzman chegou a ocupar essa cadeira. Para cumprir com seus trabalhos práticos, os discípulos percorriam o bairro auspiciando o estouro festivo: soltavam arrotos nas cerimônias nupciais, caçoavam dos comerciantes estrangeiros para provocar insultos em geringonça, fingiam-se de viados nos trens, gritavam pedindo socorro nos provadores das alfaiatarias; provocavam brigas com as crianças e simulavam perpétuas indecisões nos balcões das sorveterias.
Parece que o próprio Salzman fiscalizava estas tarefas colocando-se em lugares estratégicos e fazendo, a cada tanto, alguma correção ou sugestão.
O humor político é – dizem alguns – um passatempo intelectual que consiste em caçoar dos peronistas*.
No entanto, na Academia, a matéria era lecionada pelo professor Ricardo Bermudez, homem que pertencia a esta corrente política.
Desde o principio, Bermudez tenteou estabelecer que para fazer uma troça inteligente, qualquer partido político é bom. Assim, chegou a contar um dia que os democratas progressistas levantam o piso de madeira de suas casas para fazer churrasco. O efeito desta criação foi praticamente nulo.
Apesar de tudo, é preciso declarar que houve em seus ensinos alguns modestos acertos.
Refutou – por exemplo – o velho postulado segundo o qual é impossível fazer humor oficialista.
O humor – sustentavam os ortodoxos – implica sempre uma degradação de um valor. Por tanto, toda ação humorística será sempre contra alguma coisa. Daqui se infere a impossibilidade de uma piada a favor do governo ou da ordem vigente.
Os argumentos contrários de Bermudez são tão simples que sua exposição não produz o menor orgulho artístico.
“... É verdade que o humor se faz sempre contra alguma coisa, como já suspeitou Platão. Para fazer humor oficialista, bastaria então caçoar da oposição.”
Em efeito, a apresentação do inconformismo e do descontentamento como estados espirituais ridículos e também fraudulentos, propugnava indiretamente a admiração do pensamento estabelecido.
De fato, hoje em dia, nossos melhores humoristas são honestamente oficialistas, talvez por razões parecidas àquelas que levavam os Homens Sensíveis a desconfiar do Humor.
A Academia do Humor de Flores possuía também um registro de patentes que permitia aos engenhosos do bairro preservar a propriedade de suas criações.
O escritório atendia dia e noite, pois já é conhecida a rabugice dos inventores de bagatelas.
De todas as formas, e apesar dos minuciosos trâmites, nunca faltavam piadistas que se sentiam despojados por alguém. Isto acontece ainda na nossa época: cada vez que surge um programa de sucesso ou uma nova publicação de humor, muitos de nossos conhecidos declaram ter tido a mesma idéia muito antes.
O polígrafo Manuel Mandeb – que jamais registrou nada – desprezava os supostos danificados. Ouçamos seus gritos:
“Somente podem ser roubadas as idéias pequenas, as minúcias que cabem num bolso. As grandes criações são incômodas de levar e não estão ao alcance dos gatunos. Qualquer um pode se apropriar do slogan de uma nova cueca; a teoria da relatividade – no entanto – é de usurpação quase impossível.
Convém então ter grandes idéias, ou em outro caso, procurar que nossas ocorrências estejam coladas a nós de um modo tão íntimo e estreito que ninguém as possa arrancar de nossa alma. “Se quiserem saber, eu sou minhas idéias, e quem as roube de mim, deverá me levar consigo também.”
Mas a idéia de que as idéias não se roubam foi roubada a Mandeb. O advogado Gerardo Joseph a expôs como própria na conferência titulada “A Subtração de Idéias”. Dizem que Mandeb se apresentou ao palestrante e disse:
- Veja meu amigo, ao ouvi-lo expor minhas reflexões penso que eu mesmo dissertava. “Você era eu e talvez por isso mesmo não lhe arrebente os dentes”.
Poucos alunos alcançavam os cursos superiores da Academia. Lá se ensinava a arte do exemplo absurdo e, no entanto rigoroso, a deliciosa discordância entre a forma e o conteúdo, a nobreza da renúncia artística, e os divertidos defeitos da razão.
Também ensinavam música, poesia, pintura e teatro, pois sem um gênero que o contenha, o humor não é nada.
“Nosso negócio é feito o sal – diziam os mestres – mesmo que a comida sem ele é desagradável, muito pior é comer o sal sozinho”
Nos últimos tramos da carreira os aspirantes se tornavam melancólicos e quase nada os fazia rir. Talvez a busca do engraçado seja um caminho duro demais.
Ninguém jamais alcançou o título de Humorista Diplomado. Mas a não obtenção dessa jerarquia é precisamente o propósito final da entidade. Tratava-se talvez de apender a não rir, ou ainda melhor, a rir sem se esquecer.
Assim, despojado de toda pretençao, purificado de sua fome de riso, o aspirante poderá anotar algum pontinho.
A graça nunca se entraga a quem a procura demais.
A Academia de Flores acabou com os tempos dourados. Alguns continuam hoje com seus rigorosos preceitos. Outros não.




Violeta Parra

Violetas para Violeta
(Joaquín Sabina - Violeta Parra)




Esta música foi escrita em homenagem a Violeta Parra, compositora e cantora chilena. Joaquin Sabina fez, para isso nova letra para a música “A Carta” desta autora.








 Violetas para Violeta

A página de acontecimentos
Do “Mercurio” e “La Estafeta”(1),
Entre dietas para obesos,
Presos e falsos profetas,
Confirmava que sem beijos
Murcham as violetas
Sim.

Maldigo o céu
Que nos expropriou seu cantar,
Suas décimas, seu lenço,
Seu “quinchimalí”(2), seu pranto,
Viola de “chicha”(3) e grapefruit,
Panelas do espanto
Sim.

Tenha-se visto insolência,
Cinismo e aleivosia,
Contaminam a decência
Seqüestram a fantasia,
Quando clama a inocência
Chamam a polícia.
Sim

Violeta Parra disse isso,
A irmã de Nicanor,
Por sorte tenho violão
E sem me gabar de voz,
Se me convidarem a uma farra
Contem com meu coração
Sim.

Voaram desde Chicago
Uns gringos com gravata
E numa suíte de Santiago,
Sem pisar Chuquicamata(4),
Defecaram na minha terra
Sobravam as serenatas
Sim.

Mais sozinha do que uma mala
esquecida na Grande Avenida
Desde que Violeta foi embora
Enlutando a poesia,
Maltratam os poetas,
As faltas de ortografia
Sim.

À “cuequita”(5) do meu Chile,
Os peritos de ‘Guashingtón’,
Murcham com fuzis
Que crivam a razão,
Admirados sejam os desfiles
E o Cristo que os pariu
Sim.

Os pobres não somos ricos
Nem o cobre é mais do que barro,
A liberdade fecha o bico
Desde que existe o toque de queda,
Perguntem aos milicos
O que fizeram em La Moneda
Sim

************************
(1) "Mercurio" é um dos principais jornais chilenos. "La Estafeta (del viento)" era uma revista de poesias.

(2) Quinchimalí: localidade rural próxima a Chillán, no sul do Chile, conhecida pela cerâmica de argila preta pintada com desenhos brancos. Também é o nome de uma música chilena.

(3) Chicha: bebida alcoólica chilena derivada da fermentaçao de milho e outros cereais.

(4) Chuquicamata: é o nome de uma mina de cobre a céu aberto considerada uma das maiores do mundo.

(5) "cueca": é a música e dança oficial do Chile.






"La Carta"
Violeta Parra








A Carta

Mandaram-me uma carta
Pelo correio hoje cedo,
Nesta carta me dizem
Que caiu preso meu irmão,
E sem compaixão, com grilhões,
Pela rua o arrastaram,
Sim.

A carta diz o motivo
De ter sido preso Roberto:
Ter apoiado a greve
Que já tinha sido resolvida.
Se por acaso esse é motivo
Presa vou eu também, sargento.
Sim.

Eu, que me encontro tão longe,
Esperando uma notícia,
Vem me dizer a carta
Que na minha pátria não há justiça,
Os esfomeados pedem pão,
Chumbo lhes dá a milícia,
Sim.

Desta forma pomposa
Querem conservar seu lugar
Os de leque e de frac,
Sem ter merecimento,
Vão e vêm da igreja
E esquecem-se dos mandamentos,
Sim.

Tenha-se visto insolência,
Barbárie e alevoisia,
De apresentar o trabuco
E matar a sangue frio
Quem defesa não tem
Com as duas mãos vazias,
Sim.

A carta que recebi
Pede uma resposta,
Eu peço que se divulgue
Por toda a população,
Que o ‘leão’ é um sanguinário
Em toda a geração,
Sim.

Por sorte tenho um violao
Para chorar minha dor,
Também tenho nove irmãos
Fora o que agrilhoaram
Os nove são comunistas
Com o favor do meu Deus,
Sim.