30 sept 2009

Pequeña Serenata Diurna


Chico Buarque
Composição: Sílvio Rodriguez 










Pequena Serenata Diurna



Moro num país livre
Que somente pode ser livre
Nesta terra, neste instante
Eu sou feliz porque sou gigante
Amo uma mulher clara
Que amo e me ama
Sem pedir nada
Ou quase nada
Que não é a mesma coisa
Mas é igual.



E se isso fosse pouco,
Tenho meu canto
Que pouco a pouco
Môo e refaço
Habitando o tempo
Como lhe cabe
A um homem esperto.
Sou feliz
Sou um homem feliz
E quero que me perdoem
Por este dia
Os mortos da minha felicidade


27 sept 2009

Eu te amo

Tom Jobim - Chico Buarque/1980


Yo te amo

Ah... si ya perdimos noción de la hora
Si juntos ya lo desechamos todo
Cuéntame ahora como he de partir
Ah… si al conocerte empecé a soñar
Desvarié
Rompi con el mundo, quemé mis naves
Dime ahora para dónde puedo ir aún.
Si nosotros, en las travesuras de las noches eternas
Ya confundimos tanto nuestras piernas
Dime con qué piernas yo debo seguir
Si volcaste nuestra suerte por el piso
Si en la confusión de nuestro corazón
Mi sangre se equivocó de vena y se perdió
Cómo, si en el desorden del armario
Mi saco abraza tu vestido
Y mi zapato aún pisa el tuyo


Cómo, si nos amamos como dos paganos
Tus senos aún están en mis manos
Explícame con qué cara voy a salir
No, creo que estás apenas inventando
Te di mis ojos para que los cuidaras
Ahora cuéntame cómo he de partir.



26 sept 2009

O casamento dos pequenos burgueses

Chico Buarque/1977-1978
Para la pieza teatral Ópera do malandro, de Chico Buarque




El casamiento de los pequeños burgueses




Él hace el papel de novio correcto
Ella hace como si se desmayase
Van a vivir bajo el mismo techo
Hasta que la casa se caiga
Hasta que la casa se caiga

Él es el empleado discreto
Ella almidona su cuello
Van a vivir bajo el mismo techo
Hasta explotar el nido
Hasta explotar el nido

Él hace de macho inquieto
Ella hace niños a montones
Van a vivir bajo el mismo techo
Hasta secar la fuente
Hasta secar la fuente

Él es un funcionario completo

Ella aprende a hacer merengues
Van a vivir bajo el mismo techo
Hasta intercambiar tiros
Hasta intercambiar tiros

Él tiene una aventura secreta
Ella dice que no sale del camino
Van a vivir bajo el mismo techo
Hasta casar los hijos
Hasta casar los hijos

Él ya habla sobre cianuro
Ella sueña con formícida
Van a vivir bajo el mismo techo
Hasta que alguno decida
Hasta que alguno decida

Él tiene un viejo proyecto
Ella tiene un montón de estrías
Van a vivir bajo el mismo techo
Hasta el fin de los días
Hasta el fin de los días

Él a veces cede un afecto
Ella sólo se desnuda en la oscuridad
Van a vivir bajo el mismo techo
Hasta un breve futuro
Hasta un breve futuro

Ella calienta la papilla del nieto
Él casi hizo fortuna
Van a vivir bajo el mismo techo
Hasta que la muerte los una
Hasta que la muerte los una



A Rita

Chico Buarque/1965 



 La Rita





La Rita se llevó mi sonrisa
En su sonrisa
Mis asuntos
Se llevó con ella

Lo que es mío por derecho
Y me arrancó del pecho
Y es más
Se llevó su foto, sus trapos, su plato
¡Qué papel!
Una imagen de San Francisco
Y un buen disco de Noel (1)

La Rita mató nuestro amor
De venganza
Ni herencia me dejó
No se llevó un centavo
Porque no lo tenía
Pero causó pérdidas y daños
Se llevó mis planes
Mis pobres engaños
Mis veinte años
Mi corazón
Y además de todo eso
Me dejó muda
La guitarra.

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(1) Noel Rosa fue un sambista, cantante, compositor, mandolinista y guitarrista brasileño y uno de los mayores y más importantes artistas de la música de su país.


Fue responsable de la unión del «samba de morro y el «samba del asfalto», hecho que cambiaría para siempre no sólo el propio samba, sino la historia de la música popular brasileña.

La decadencia de la amistad

A decadência da amizade
Alejandro Dolina


Muitos pensadores acreditam que, nestes tempos, a amizade é mais um tema de conversa do que uma atividade concreta.
Certamente é relativamente fácil encontrar pessoas dispostas a compor canções sobre os amigos. No entanto, é bastante difícil conseguir que essas mesmas pessoas nos emprestem dinheiro.
Pelo que parece, o sentimento amigável se encontra em decadência. Todos os dias tropeçamos com canalhas que, longe de se preocuparem pela escassez de amigos, se orgulham dela.
- Eu, amigos, o que se diz amigos, tenho muito poucos ou nenhum – nos gritam na cara. E não advertem que o sujeito está esperando que o parabenizem por semelhante façanha.
Nos anos dourados de Flores, quando alcançavam seu apogeu a compreensão, a poesia e as cutucadas de cotovelos, também existiam inimigos da amizade que preocupavam aos Homens Sensíveis.
Manuel Mandeb, o metafísico da Rua Artigas, colecionou algumas de suas obtusas opiniões em um opúsculo titulado maliciosamente Los Amigos. Com de costume, transcreveremos alguns parágrafos.
“... A amizade deve nascer na juventude ou na infância. Nossos amigos são aqueles que aprendem junto a nós ou, melhor ainda, os que vivem aventuras ao nosso lado. E, em geral, as pessoas aprendem e vivem aventuras na sua juventude. Depois quase todo mundo consegue algum emprego em casas comerciais e já fica impossível adquirir conhecimentos novos ou brigar com uma turminha.”
“... aos onze ou doze anos, começamos a detestar a família e a achar que os rapazes da esquina são muito mais divertidos do que o tio Jorge. Durante mais ou menos uma década ninguém estará mais perto do nosso coração do que estes rapazes. E se queremos nos aprovisionar de amigos, devemos fazê-lo nesse período. Depois será tarde demais...”
Pelo que se pode apreciar, o critério de Manuel Mandeb é interessante e talvez verdadeiro. Acontece que em certo momento da vida, descobrimos que estamos rodeados de estranhos: colegas de trabalho, fregueses, credores, vizinhos, cunhados. Os amigos de verdade estão longe, provavelmente encerrados em círculos parecidos.
Alguns teimosos insistem em cultivar amizades novas. Os matrimônios maduros se visitam mutuamente e desenvolvem pálidas paródias da amizade verdadeira: contam uma e outra vez episódios antigos, vividos com os amigos velhos, que já não estão. Quando somos jovens não contamos histórias aos nossos amigos: as vivemos com eles. Apesar destas sábias reflexões de Mandeb, existiu em Flores uma agência destinada a oferecer amizade aos solitários. Foi o célebre Armazém de Amigos de Ocasião. Seus fins de lucro eram inegáveis. Ainda hoje se lembra do seu ‘slogan’ publicitário: “Tenha um amigo desinteressado. Pague-o em prestações”.
Já ao se aproximar ao balcão, o freguês já notava um clima amigável e amplo. Os empregados sabiam como atacar.
- Boa tarde. Você não sabe o que a bruxa da minha mulher fez comigo hoje de manhã...
E aos trinta segundos já nos sentíamos entre amigos. Depois, entre tapinhas nas costas, piscadelas, beliscões e confidências, os comerciantes iam mostrando o amplo catálogo do armazém.
Tinham amigos silenciosos, dispostos a escutar cinqüenta vezes a história de uma operação. Amigos complacentes, sempre amáveis e elogiosos. Amigos efusivos que cumprimentavam com abraços e se despediam aos gritos. Amigos divertidos, rudes com piadas picantes e peritos em brincadeiras pesadas.
Também se prestava um serviço um tanto mais caro, especialmente para pessoas de alta posição. Consistia no aluguel de uma corte de aduladores que acompanhavam o cliente a todas as partes, riam de suas piadas, aplaudiam suas idéias e subscreviam com entusiasmo qualquer um de seus pensamentos. Precedendo esta comparsa, costumava marchar um “corneta” que abria a porta dos bares e metendo a cara gritava:
- Aí vem o doutor Del Prete!
O trabalho era tão bem feito que muitos dos contratantes já não puderam prescindir dele nunca mais. Muitos profissionais do bairro extinguiram sua fortuna pagando este serviço da agência.
Um assunto que incomodava os clientes era o rigor dos Amigos de Ocasião em seus horários. Quando expirava o prazo estipulado, acabava a amizade. Sem cumprimentar, os contratados davam meia volta e iam embora, muitas vezes interrompendo uma gargalhada ou se livrando bruscamente de um abraço fraterno.
No entanto, temos que admitir que alguns aspectos do funcionamento do Armazém eram bastante nobres.
Por exemplo, a Seção Crianças permitia que os pais escolhessem os amigos de seus filhos, sem correr risco algum.
Para isso, contavam com um numeroso plantel de crianças e inclusive de anões adestrados em diferentes atitudes.
De acordo ao gosto paterno, podiam encontrar crianças peraltas pra despertar os pequenos bobalhões, crianças estudiosas para estimular os meio burros, e crianças educadas e ajuizadas para serenar os mais piratas.
Claro, não puderam evitar que muitas crianças se resistissem à decisão de seus pais. Assim, ouvia-se com freqüência em Flores frases como esta:
- Vá brincar com os amiguinhos que seu pai alugou, poxa!
Existia também um departamento para Damas, com um amplo surtido de fofocas. Alguns mal intencionados diziam que as mulheres não contratavam amigas, senão inimigas, mas isso é outro assunto.
O fracasso mais espalhafatoso foi o da seção de Amizades Mistas. Nada difícil é perceber que os cavalheiros que solicitavam amigas escondiam quase sempre outras intenções. Não se espante o leitor pensando que nos internaremos em um tema tão enxovalhado como o da amizade entre a mulher e o homem. Vale a pena – isso sim – recordar o que disse Manuel Mandeb a uma amiga sua, talvez alugada no Armazém.
- Veja, eu posso ser seu amigo se a senhora quiser. Não tentarei seduzi-la nem me porei romântico, nem lhe farei propostas indecorosas. Mas saiba que eu preciso que exista um amor potencial. É indispensável para mim que exista uma possibilidade em um milhão de que algo surja entre nós. Deixo claro que é provável que se essa circunstância se apresenta, eu saia correndo. Mas é unicamente em virtude dessa remotíssima chance que eu estou aqui ouvindo a sua conversa feito um imbecil.
Os Homens sensíveis nunca foram bons clientes do armazém Amigos de Ocasiao. Talvez porque seus orçamentos eram muito humildes. Ou talvez porque gostavam que os amassem de graça. Em qualquer caso, os rapazes do Anjo Cinzento tinham pudor nestas questões. Para eles andar declarando publicamente o grau de amizade que sentiam por alguém era coisa de afeminados. Manuel Mandeb passava longas horas na esquina de Artigas e Morón fumando com Jorge Allen, o poeta. Muitas vezes nem se falavam. Contentavam-se com saber que o outro estava ali.
Já em sua última etapa, o armazém começou a oferecer velhos amigos.
No inicio a idéia era rastrear – a pedido do cliente – o paradeiro de pessoas ausentes e afastadas. Mas como advertiram que a tarefa era complicada demais, resolveram que era mais fácil inventar antigas amizades que resgatá-las do passado.
Prepararam então um magnífico grupo de velhos mentirosos que ante a entrada de algum candidato de certa idade, fingiam reconhecê-lo e soltavam quatro ou cinco lembranças para ir tomando confiança.
Esta seção trabalhava muito nas ceias anuais que costumavam realizar os ex-alunos dos colégios. Sua missão consistia em ir substituindo os falecidos e manter sempre a concorrência.
Assim, em certa reunião de formados do Colégio Nacional Nicolás Avellaneda, promoção 1921, aconteceu o curioso caso de que nenhum dos assistentes tinha pisado jamais esse estabelecimento, o que não os impediu de evocar professores, rir das passadas travessuras e brindar por encontros futuros.
Com o tempo, a atividade do armazém foi minguando. Contribuiu a esse fato, certa má fama que sempre ganha a amizade para os espíritos céticos. Em Flores, e em todos os bairros, se contavam lendas sobre as traições dos amigos e sobre a vantagem da solidão. Ainda em nossa época, há pessoas que sentem prazer em declarar que os cachorros são mais leais e sinceros do que os humanos. Cabe sobre isso uma pequena reflexão.
Talvez seja verdade que os cachorros não traem. Mas isso não é na verdade uma virtude do animal. Acontece simplesmente que a modesta organização mental do cachorro lhe impede realizar processos tão complicados como um calote. Quer dizer: os cachorros não podem nos trair pelo mesmo motivo que não podem escrever novelas.
Hoje, quando já não existe o Armazém Amigos de Ocasião, vele a pena perguntar se não será necessário inventar algo para substituí-lo.
Será difícil, claro. Ninguém poderá resgatar os amigos perdidos. Pouco poderá ser feito para nos livrarmos dos desconhecidos que preenchem nosso tempo. Em todo caso, cada um de nós deverá cuidar do pouco que tenha. Sem compor canções nem escrever poemas. Trata-se unicamente de se sentar um pouco na calçada ou de tomar chimarrão em silêncio com os que estão mais perto do nosso espírito.
Se já não temos os amigos de antes, é possível que exista no mundo velhos amigos que ainda não conhecemos.
Eu mesmo, na outra noite, resolvi sair do meu encerro e cheio de ilusões me encaminhei a certa esquina que conheço. Tinha vontade de fumar em silêncio junto a três ou quatro sujeitos que se estacionam naquele lugar.
Pensava, além disso, recolher uma piscadela amigável depois destes anos em que estive tão ocupado.
Mas algo estranho deve ter acontecido, porque não havia ninguém.




Leyenda del volador de Flores

Lenda do voador de Flores
Alejandro Dolina




Quase todos os homens sensíveis de Flores conheciam Luciano, o voador. Costumava atender uma banca de jornal na esquina de Bocayá com a Avenida. Seus apologistas asseguram que levantava apostas do jogo do bicho, coisa que não consta para nada ao compilador destas histórias. De resto, a través de todos os mitos de Flores parece constante o desejo de enaltecer a lembrança dos heróis, atribuindo-lhes atividades relacionadas com o jogo. Se for verdade o que se conta, Luciano voava. Suas escassas fotografias o mostram leve e magro, mas carente de asas. Uma delas, que costuma ser usada como prova do seu dom, o registra ao lado direito de um grupo numeroso e seus pés aparecem no ar, a uns escassos vinte centímetros do chão. Os cépticos atribuem este efeito a um truque fotográfico ou a um pequeno pulo oportuno.
No entanto, a tradição oral de Flores insiste em recordar os vôos de Luciano. Os mais velhos asseguram que, quando era uma criança, despendurava as pipas que ficavam embaraçadas nas árvores e recobravam as bolas que caiam nos tetos da vizinhança. Já mais velho, preferiu sempre vôos noturnos. Parece que o céu sustenta melhor de noite e não se corre o risco de chamar a atenção dos bobalhões.
Faz-se a exceção nos dias de chuva ou granizo. Luciano prescindia dos ônibus e taxímetros. Uma pequena viagem ao centro lhe ocupava apenas dez minutos. Costumava aterrissar em terraços solitários e descer pelo elevador para evitar o escândalo. Sendo voador, Luciano era discreto. Conheceu – dizem por aí – o segredo de todos os campanários de Flores, cruzou mil vezes com as bruxas nuas que sobrevoam Belgrano e cumprimentou os anjos ociosos que se deixam levar pelo vento.
Seus inimigos o acusavam de roubar figos e velocípedes, para não falar das lâmpadas das luminárias públicas. Os aviões lhe produziam terror, desde um dia em que passeando por El Palomar, um ardo Avro Lincoln quase lhe arranca a cabeça.

Manuel Mandeb foi o principal fornecedor de anedotas de Luciano. O pensador árabe conta – por exemplo – as desagradáveis conseqüências que padeceu por causa de sua ignorância no uso da bússola e da posição dos astros. Assim, nos dizem que uma noite que voava em direção ao Estádio de Vélez Sársfield com a ladina intenção de entrar de penetra, equivocou o caminho e descobriu as vertentes do rio Matanza. Encontrou lá – sustenta Mandeb – grandes populações lacustres semelhantes às que surgiram em Suíça há milênios. Tomando-o por um Deus, os inocentes habitantes o acolheram, lhe deram de beber hidromel, cederam-lhe uma jovem mais ou menos donzela e lhe obsequiaram uma parelha de galinhas e um vaso de flores, único destes objetos que ainda conserva.
Estes contos são muito suspeitos. Suspeita também é a história que fala de Luciano seguindo uma revoada de andorinhas até os trópicos ou aquela que faz referência à luta contra uma condor caipira. Quando começaram as calamidades no bairro de Flores, Luciano decidiu partir. As pombas azuis com suas penas de aço invadiram o céu do bairro e o voador sentiu medo.
Manuel Mandeb insiste em que antes de ir embora para sempre, Luciano lhe contou o segredo da sua incrível destreza. Diz Mandeb que um mágico estrangeiro lhe concedeu o dom do vôo, mas fez a seguinte recomendação: “Voarás, Luciano, mas cuida de que quem o saiba não escreva nunca a sua história. Quando alguém a leia, seu poder cessará definitivamente”
Isto explica que as façanhas de Luciano só tenham sido transmitidas em forma oral. Nenhum dos literatos de Luciano o menciona jamais. Graças a isso Luciano continuou voando até o dia de hoje, leitor ímpio, em que seus olhos curiosos o despenharam para sempre.



Los amantes desconocidos

Os amantes desconhecidos
Alejandro Dolina

A sociedade de Amantes Desconhecidos de Flores foi, talvez, a entidade mais secreta do bairro. Sua própria natureza fazia imprescindível a discrição. Há alguns anos, cada vez que alguém recebia uma carta de amor sem assinatura, os homens sábios não vacilavam em atribuí-la à Sociedade. Era isto um erro: sempre existiram apaixonados ocultos, sem necessidade de inventá-los.
Por outra parte, cabe raciocinar que a obra dos Amantes Desconhecidos só pôde ter um bom efeito na medida em que não lhes fosse atribuída. Calcula-se que durante os anos de sua atuação, a Sociedade forjou mais de duas mil histórias de amor. O procedimento habitual era simples. Sem maiores cerimônias escolhia-se uma pessoa qualquer. A maioria das vezes se tratava de solitários, melancólicos, desiludidos, entediados ou simplesmente amigos a quem a entidade desejava favorecer. O passo imediato consistia em criar um amante fictício para a pessoa escolhida. Uma equipe de engenhosos criativos se encarregava do assunto. Aos engenheiros lhes inventavam adolescentes pícaras. Às costureiras da Rua Morón, lhes desenhavam nobres arruinados. Aos Homens Sensíveis lhes faziam amantes românticas e trágicas, mas também peitudas, que era uma verdadeira delícia. Uma vez estabelecidas as características gerais do amante fictício, enviavam a primeira comunicação. Assim, muitos homens e mulheres de Flores receberam surpreendentes declarações anônimas que os enchia de estupor. Transcreve-se a continuação a carta com número de ordem 1114.
“Querido engenheiro Atilio D. Gallardo: Escrevo-lhe desde a escuridão da minha solidão. Rogo-lhe que me desculpe se usurpo sua preciosa intimidade. Mas existe, meu querido engenheiro, um sentimento dentro de mim que já não posso dominar. É preciso que o senhor saiba que lhe amo, engenheiro. O senhor não me conhece... ou pra dizer melhor: o senhor jamais reparou em mim. Quem sou eu? Não creio que valha a pena que o senhor o saiba. Digamos que me chamo Luisa, mas esse não é meu verdadeiro nome. Alguns dizem que sou jovem e bela, mas talvez exagerem. Ah... se soubesse, engenheiro, quantas vezes chorei pelo senhor. Se soubesse quantas noites acordei chorando e pronunciando seu nome: Atilio. Em meu quarto tenho um pequeno retrato seu que recortei da revista “Temas da construção”. O senhor talvez ria dos delírios de uma pobre moça apaixonada. Mas já não posso lutar mais contra meu coração, engenheiro. Quero lhe propor algo. Escreva-me. Conte-me algo de sua vida. Claro, ainda não penso revelar minha verdadeira identidade, de forma que o senhor deverá se dirigir a Luisa, Caixa postal 32. Um beijo apaixonado de sua Luisa.”
Depois começava a verdadeira história. O engenheiro respondia, Luisa escrevia outra vez, o engenheiro reclamava um encontro, Luisa se negava... e entre carta e carta iam-se conhecendo e interessando cada vez mais. Claro, o encontro não devia se produzir jamais. E esta é em verdade uma regra de ouro dos amantes desconhecidos, reais ou fictícios. Toda relação deverá girar em torno de um encontro futuro. Mas é fundamental não se encontrarem nunca. As razões são óbvias: todo amante desconhecido é perfeito. Tem a cara que desejamos. É ao nosso parecer loiro, moreno, ou ambas as coisas ao mesmo tempo.
O amante desconhecido não tem defeitos, não gagueja, não enche o saco com coisas quotidianas. Mas há uma virtude fundamental: por não ser ninguém, é também todas as pessoas do mundo. Se cometer o desatino de dar uma identidade certa, o amante desconhecido se diminui, mesmo que seja um anjo. Se for alto, já não poderá ser baixinho. Se for atlético, já não poderá ser magrinho. Se for João, já não poderá ser Pedro. Se for Luisa, já não poderá ser Esther. Por estes mesmos motivos, a Sociedade de Amantes Desconhecidos jamais enviava fotografias, apesar de sim as reclamarem de seus beneficiados.
A atividade destes filantropos tinha por objetivo combater a solidão e a desdita. Cabe dizer que sua ação despertava nos vizinhos do bairro um saudável espírito de emulação. Ao conhecer a existência de apaixonados secretos, muitas pessoas descobriam dentro de si essa mesma condição. E assim, junto aos amantes de ilusão criados pela Sociedade, produziram os amantes secretos verdadeiros.
Em seus tempos livres, Manuel Mandeb escrevia cartas com quatro amores misteriosos. O pensador suspeitava que ao menos duas fossem obra da Sociedade, mais do que nada, pelo papel barato das cartas. Mas suas investigações o levaram a comprovar a existência certa das outras duas. Uma delas acabou sendo uma companheira de um curso de violão que Mandeb seguia penosamente. Quando o homem se apresentou a ela com as cartas na Mao, a moça rompeu a chorar e fugiu para sempre. A última das amantes secretas era – como soube muito depois - Beatriz Velarde, a moça mais bela de Flores, de que – por sua vez – Mandeb era apaixonado secreto em outra coleção de cartas. Mas estava escrito que Manuel e Beatriz não se amassem nunca. O ingresso a Amantes Desconhecidos de um grupo de redatores humorísticos e malévolos provocou uma série de catástrofes que marcaram a decadência da Sociedade.
Estes profissionais, que perseguiam unicamente a diversão pessoal, começaram a enviar cartas a damas casadas e a urdir toda classe de intrigas chulas. Deste modo conseguiram que a Sra. Aurora B. de Gracia Vassari se apresentasse às quatro da manhã com uma vela na mão no fundo do Beco Trieste. Também foram os culpados de infinidade de divórcios, brigas, confusões e safanões entre os matrimônios mais acrisolados de Flores.
Mas há que mencionar um fenômeno curioso que acontecia com quase todos os membros da Sociedade. Conforme avançava a correspondência com os beneficiários, muitos roteiristas se apaixonavam de verdade. A conhecida redatora publicitária Luz Vasallo enlouqueceu de amor pelo poeta Jorge Allen, cujo caso atendeu durante meses. Para evitar estas situações, as autoridades da entidade resolveram uma rotação de roteiristas. Mas o resultado foi desastroso. As cartas perdiam coerência e verossimilhança, pois os redatores não chegavam a compenetrar devidamente com sua função. Sobre o final de suas atividades, Amantes Secretos recorreu ao telefone. Não foi uma experiência feliz. A linguagem telefônica é menos tolerante com a criação artística e, além disso, muitos roteiristas soltavam a gargalhada no meio da conversa, provocando certa perplexidade no freguês.
O jogo dos Amantes Desconhecidos era sem dúvida empolgante. Mas mesmo que admitisse processos mais ou menos prolongados, finalmente acabavam por se extinguirem. Ninguém pode resistir muito tempo à tentação de se conhecerem. Todos, cedo ou tarde, exigem a consumação do amor epistolar. E assim terminavam todas as histórias. A maioria das vezes com o silêncio e o esquecimento. Em alguma ocasião, com encontros mais bem desbotados.
Ives Castagnino, o músico de Palermo, encontrou uma vez uma dama desconhecida que havia lhe enviado cartas durante anos. Quando a viu na esquina, se aproximou e lhe disse: - Boa Noite. Sou a Decepção.
Hoje já ninguém fala dos Amantes Desconhecidos de Flores. Mas esta entidade sem fins de lucro bem pode deixar em nosso espírito a sombra de uma idéia. Por que não nos convertermos em Amante Desconhecido? Por que não ajudar com ilusões tantas almas solitárias que andam pela vizinhança?
A vida está se tornando muito tediosa. Seria maravilhoso receber uma destas manhãs um bilhete perfumado cheio de beijos que vem sabe-se lá de onde. Deixo a inquietude a tantos roteiristas, redatores, poetas e literatos que mal gastam seu tempo jogando sinuca.



24 sept 2009

Al Lado Del Camino

Fito Paez

Ao Lado do Caminho

Gosto de estar a um lado do caminho
Fumando a fumaça enquanto tudo acontece
Gosto de abrir os olhos e estar vivo
Ter que enfrentar a ressaca
E então navegar se for preciso
Em barcos que esbarrem na nada
Viver atormentado de sentido
Acho que esta, sim, é a parte mais pesada

Em tempos onde ninguém escuta ninguém
Em tempos onde todos contra todos
Em tempos egoístas e mesquinhos
Em tempos onde sempre estamos sozinhos
Haverá que se declarar incompetente
Em todas as matérias do mercado
Haverá que se declarar inocente
Ou haverá que ser abjeto e desalmado
Eu já não pertenço a nenhum ‘ismo.
Considero-me vivo e enterrado
Eu pus as canções em teu walkman
O tempo me pôs em outro lado
Terei que fazer o que é e não o devido
Terei que fazer o bem e fazer o mal
Não esqueças que o perdão é o divino
E errar às vezes acostuma ser humano.

Não é bom ganhar inimigos
Que não estejam à altura do conflito
Que pensem que fazem uma guerra
E se urinam nas calças como crianças
Que andam por sinistros ministérios
Fazendo a paródia do artista
Que tudo o que brilha neste mundo

Só lhes provoca caspa e lhes dá inveja
Eu era um garoto triste e encantado
De Beatles, cana Legui e maravilhas
Os livros, as canções e os pianos
O cinema, as traições, os enigmas
Meu pai, a cerveja, as pastilhas
Os mistérios do uísque ruim
Os óleos, o amor, os cenários
A fome, o frio, o crime
O dinheiro e minhas dez tias
Fizeram-me este homem misturado.

Se alguma vez atravessas comigo pela rua
Dê-me seu beijo e não se aflija
Se vê que estou pensando noutra coisa
Não é nada ruim, é que passou uma brisa
A brida da morte apaixonada
Que ronda feito um anjo assassino
Mas não te assustes, sempre passa
É só a intuição do meu destino

Gosto de estar a um lado do caminho
Fumando a fumaça enquanto tudo acontece
Gosto de voltar do esquecimento
Para lembrar em sonhos de minha casa
Do menino que jogava bola
Do 49585 (1)
Ninguém nos prometeu um jardim de rosas
Falamos do perigo de estar vivo
Não vim divertir a sua família
Enquanto o mundo cai em pedaços
Gosto de estar ao lado do caminho
Dormir cada noite entre os meus braços
Ao lado do caminho
Ao lado do caminho
Ao lado do caminho
É mais divertido e mais barato
Ao lado do caminho
Ao lado do caminho
_______________________________

(1) 49585 é o número telefônico da infância de Fito Paez em Rosário, Argentina
Fonte:

http://comunidadpaezperu.blogspot.com/2009/04/del-49585-y-lo-que-significa-en-la-vida.htm


23 sept 2009

Carolina


... Chico tuvo un otro programa de televisión en los años 60 – Shell en show mayor, en la TV Globo, al lado de Norma Bengell. Hizo el primer programa pero se avergonzó tanto que no apareció al día siguiente para grabar el segundo. La emisora, con razón, quiso que pagara una multa. La cosa iba mal cuando Walter Clark, superintendente de la estación, mandó a decir que la multa podía ser olvidada con tal de que él inscribiera una música en el II Festival Internacional de la Canción, el FIC, que la Globo iba a promocionar en octubre de 1967. El compositor aceptó la propuesta – y fue para saldar esa deuda que nasció una de sus canciones más famosas, “Carolina”. Y también una de las que él menos aprecia. Se acuerda de haberla hecho en un avión o aeropuerto, en las piernas. La dupla Cynara y Cybele estaba buscando una música para entrar al festival, y Rui, del grupo MPB-4, que estaba casado con Cynara le vino a preguntar a Chico si él no tendría alguna música en el cajón. Entregó “Carolina” con la advertencia de que a él no le gustaba. Oyó la finalísima del FIC por la radio, en Bahía, en casa de Roni Berbert de Castro – el amigo que, años después, en noviembre de 1972 promocionaría su histórico show con Caetano Veloso en el Teatro Castro Alves, en Salvador. Su música quedó en tercer lugar, detrás de la campeona “Margarida” de Gutemberg Guarabira, y de “Travessía”, de Milton Nascimento. “Yo no entiendo más nada”, dice Chico perplejo. Para mal de sus pecados, “Carolina” fue grabada por Aguinaldo Rayol en un LP con las doce preferidas del general Costa e Silva.


…Muchos vieron, por ejemplo, una pizca de burla en la grabación que hizo Caetano de “Carolina” para su disco de 1969, después de salir de la prisión del AI-5 y antes de partir para el exilio en Londres. Caetano afirma que no hubo maldad. La idea de grabar la música, dice, se le ocurrió en Salvador, donde estaba confinado, al ver en la televisión un rostro de niña cantando “Carolina” en un programa de amateurs. “Aquello me llenó los ojos de lágrimas”, cuenta. La muchacha de la canción le pareció la anti-musa de Brasil en aquél sombrío año de 1969.

Humberto Werneck, Gol de Letra, em Chico Buarque Letra e Música, Cia das Letras, 1989.



Carolina
Chico Buarque/1967
 

Carolina
En tus ojos profundos
Guardas tanto dolor
El dolor de todo este mundo
Yo ya te expliqué que no va a funcionar
Tu llanto no va a cambiar nada
Yo ya invité a bailar
Es el momento, ya lo sé, de aprovechar
Allá afuera, amor
Una rosa nasció
Todo el mundo bailó
Una estrella se cayó
Bien que le mostré sonriendo
Por la ventana, mira qué lindo
Pero Carolina no lo vio.

Carolina
En sus ojos tristes

Guarda tanto amor
El amor ya no existe
Yo bien que avisé, va a terminar
De todo le di para aceptar
Mil versos canté para agradarle
Ahora no sé cómo explicar
Allá afuera, amor
Una rosa murió
Una fiesta terminó
Nuestro barco partió
Yo bien que le mostré a ella
El tiempo pasó en la ventana
Sólo Carolina no lo vio.



21 sept 2009

El arte de la impostura



A  arte da impostura.
Alejandro Dolina


O homem de nossos dias vive tentando causar uma boa impressão. Seu principal desvelo é a aprovação alheia. Para consegui-la existem diferentes métodos e estratégias.
Alguns exercem a inteligência, outros decidem pela tenacidade ou a beleza, outros cultivam a santidade ou a coragem.
No entanto, por ser todas estas virtudes muito difíceis de cumprir, certos trapaceiros se limitam a fingi-las. Claro que também não é simples: o engano é uma disciplina que exige atenções e cuidados permanentes.
Por sorte para os hipócritas e simuladores, existe desde há muito tempo o Serviço de Ajuda ao Impostor.

1- Baseados em modernos critérios científicos, os especialistas da organização instruem, aconselham, ditam aulas, remexem casos particulares e difundem as técnicas mais refinadas para obter aparências de proveito. Quando algum pé rapado quer presumir de elegante, o Serviço lhe recomenda alfaiates, loções e gravatas. Quando se trata de aparentar cultura, o cliente tem à sua disposição frases feitas, aforismos brilhantes e gestos de suficiência. Os que pretendem passar por corajosos são adestrados na arte da fleuma e da malandragem. Muitos pobres praticam para se fingirem de ricos, e muitos ricos se esforçam por parecerem indigentes. Devemos dizer que alguns postulantes são muito burros e não chegam a completar os cursos. Outros têm características tão marcadas que acaba sendo impossível dissimulá-las. Durante muitos anos, os hipócritas desaprovados deveram se resignar a mostrar cruamente as suas verdadeiras e abomináveis condições, ou bem serem descobertos em suas torpes fraudes. Mas com o tempo, o Serviço encontrou uma fórmula drástica para socorrer aos menos favorecidos. Assim nasceu a substituição como recurso extremo. Imaginemos um moreno tentando infrutuosamente ingressar num seleto clube noturno. O homem fracassa com as tinturas e maquiagem. Imediatamente o serviço designa um loiro de pés a cabeça em sua substituição. O impostor entra sem problemas e em nome do moreno rejeitado, dança e se diverte a noite toda.
Os exemplos são inúmeros: estudantes medíocres que se fazem substituir nas provas; apaixonados tímidos que – como Cyrano de Bergerac – mandam em seu lugar um mulherengo; empregados capazes que para conseguir um Ascenso enviam um lambe-botas e pessoas fartas da sua família que se fazem substituir nos aniversários.

O Serviço de Ajuda ao Impostor foi aperfeiçoando a tecnologia da substituição com disfarces impecáveis. Suspeita-se que, hoje em dia, a maioria das pessoas com quem tratamos são na verdade agentes da organização. Nossos amigos, nossas namoradas, nossos governantes e nossos cunhados podem ter sido substituídos por impostores profissionais. Talvez eu mesmo esteja fingindo escrever estas minúcias a nome e beneficio de um cliente chamado Dolina. Talvez você, que finge me ler, esteja substituindo alguém que não se atreve a confessar que os mitos de Flores já estão enchendo o saco.

2- Os governos, do mesmo modo que as pessoas particulares, vivem preocupados pela opinião dos de fora. Continuamente sugerem à população a necessidade de melhorar o que se chama imagem exterior.
Para consegui-lo, promove-se a difusão de nossos aspectos mais brilhantes. Quando nos visitam os estrangeiros, lhes mostram nossos recantos mais apresentáveis, dão-lhe um pastel e lhes obrigam a escutar a orquestra de Osvaldo Pugliese.
A exaltação dos nossos méritos vai quase sempre acompanhada de um cuidadoso dissimulo de nossos defeitos. Além disso, com o objeto de aparentar e faltando estrangeiros, se acostuma dar bandeira ante os próprios conterrâneos.
Com toda insistência, se assinala que os médicos argentinos são os melhores do mundo, para não mencionar os doentes. Quando se produz algum defeito em uma transmissão internacional, os locutores se apressam a esclarecer que o problema se originou no satélite alemão, com o qual ficamos tranqüilos.
A atitude temerosa do julgamento alheio é proverbial no jornalismo. Há pouco tempo uma cronista aproveitou sua passagem por Roma para consultar os transeuntes italianos acerca de nossa nova situação institucional. Os telespectadores receberam várias reflexões, expressadas em geringonça que, em geral, nos perdoavam a vida. Ao final da enquete, a cronista não podia ocultar a sua satisfação. Havíamos passado a difícil prova de agradar os sorveteiros da Via Marguta.
Não estaria mal recorrer ao Serviço de Ajuda ao Impostor para aperfeiçoar nossas representações perante estranhos.
A solvência da organização nos permitiria aparentar qualquer coisa: que temos 100 milhões de habitantes, que somos prósperos, que somos poderosos. Poderiam editar censos adulterados e mapas fraudulentos que nos mostrem no dobro da nossa extensão.
Manuel Mandeb recomendou alguma vez a conveniência de nos fingirmos o Japão, para desconcertar nossos inimigos. O pensador de Flores propunha que todos nos esticássemos os olhos com os dedos e falássemos pronunciando os “erres” como “eles”.
Assim nos alcança uma dúvida: não será que outros países já nos estão enganando? A citada potência norte-americana pode ser nada mais do que uma ficção criada pelos impostores do Norte. Talvez Suécia seja um país tropical, mas dissimula. Quem sabe a União Soviética seja uma pequena república da África e Luxemburgo é na verdade o maior país do mundo.
Em todo caso, antes de encarar qualquer ação para melhorar a nossa imagem exterior, é indispensável decidir qual é a sensação que queremos deixar. Se dispersarmos os nossos esforços em simulações diferentes e desconectadas, os resultados serão mais bem confusos. Diga-se de uma vez o que fingiremos ser: uma nação tranqüila? Uma nação exaltada? Uma nação limpa? Uma nação anglo-falante?
Os tratadistas reconhecem três tipos de impostura: horizontal, ascendente e descendente. A última consiste em se mostrar pior do que é. E não faltam economistas que postulam este caminho para despertar a comiseração internacional.

3- Os teóricos mais barrocos do Serviço acreditam que a impostura é uma arte. E mais ainda: afirmam que toda arte é uma impostura. Cem gramas de pintura ao óleo nos aparecem com um rosto misterioso ou como uma paisagem lunar. Quinhentos gramas de bronze pretendem ser o corpo de Hércules. Uma curiosa combinação de tintas e papéis é apresentada como a alma de um homem atormentado.
Somente a música está livre de simulações. Um acorde em mi menor é precisamente isso e não pretende ser nada mais.
Os teóricos também defenderam o caráter ético da impostura ascendente. O argumento principal não é novidade: de tanto aparentar bondade, a gente acaba sendo bom.
Falta nesta monografia dados concretos que permitam ao leitor a contratação do Serviço. Lamentavelmente não é possível fornecê-los.
Para começar, ninguém sabe qual é a localização da entidade. Às vezes o local assume o aspecto de um armazém. Outras vezes, aparece como um bar ao passo, ou como uma estação ferroviária. Os impostores são sempre conseqüentes com as suas representações e por mais que lhes expliquemos as nossas necessidades, insistem em vender feijão, servir genebra ou despachar uma passagem de ida-e-volta a Caseros.
É verdade que freqüentemente aparecem impostores oferecendo seus serviços. Mas a organização já advertiu ao público que se trata na verdade de falsos impostores que devem ser denunciados à polícia.



4- Sabe-se lá quantos ridículos passos de dança teremos feito nós para agradar polacos e coreanos.
Estaremos bem? Não seremos uma nação fora de lugar? Que pensarão de nós estes visitantes holandeses? Gostou de nossa estrada, senhor Smith? Cuidado dissimule que aí vem um francês! Não estaremos destoando no concerto internacional?
Eu acredito que talvez não importe destoar num concerto que parece dirigido pelo Diabo.
Vale a pena tentar o caminho difícil, o mais penoso, o mais longo, mas também o mais seguro. É o caminho da verdade. Quem queira parecer honesto, que o seja. Quem queira fama de valente, que ganhe à força de coragem. E se queremos que o mundo pense que somos uma grande nação, saibamos que o mais conveniente é ser deveras uma grande nação.
Enquanto chegam esses tempos, poderíamos começar a fingir que não fingimos.



Pactos diabólicos en Flores



Pactos diabólicos em Flores
Alejandro Dolina

Os Homens Sábios asseguram que nos velhos tempos, o demônio e seus subalternos passeavam com freqüência pelo bairro de Flores. Depois do anoitecer, na praça e na estação, rondavam nobres e plebeus infernais.
Asmodeo, inspirador do jogo, visitava os antros.
Baal- Fagor auspiciava inventos e descobrimentos perversos.
Uzza e Azael ensinavam às mulheres a se maquiarem para acender a luxúria dos homens.
E também espreitavam Astaroth, Belial, Samayaza, Yekun e Belzebu, o senhor das moscas.
O próprio Satã parava numa leiteria da Rua Artigas.
O aspecto dos demônios permitia confundi-los com cidadãos vulgares. E na verdade, isto é o que acontecia geralmente. Só os muito sagazes alcançavam a vislumbrar os sinais que denunciam ao que vem da escuridão: a elegância em exageração, os sapatos reluzentes, o anel no dedinho, o relógio de ouro, uma unha longa e afiada, um papelzinho na abotoadura do colarinho.
Suspeita-se que o propósito daquelas presenças era concretizar os pactos diabólicos.
Manuel Mandeb jurava ter visto um carro de noite, conduzido pelo Coisa Ruim. O polígrafo de Flores assustava as crianças imitando o refrão:
- Almas... compro almas... chegou a tentação, dona...
O músico Ives Castagnino mostrava um contrato de pragmática imprimido na gráfica do Averno. Lá se estabeleciam as condições gerais do pacto e as obrigações do aspirante que eram treze.

1) Renegar de Deus
2) Blasfemar continuamente
3) Adorar o diabo
4) Usar qualquer meio para não procriar
5) Jurar em nome do diabo
6) Comer carne
7) Imaginar que tem comércio carnal com o diabo
8) Levar sempre consigo a imagem do diabo.
9) Lavar a cara e pentear de quatro em quatro dias
10) Tomar banho a cada quarenta e dois dias
11) Mudar de roupa a cada cinqüenta e sete dias
12) Barbear a cada noventa e um dias
13) Não cortar nem limpara as unhas jamais e comer a cada quatro horas quatro dentes de alho.

Aceitar um pacto com o demônio significava sempre a entrega da alma.
Suspeita-se que em Flores algumas pessoas foram efetivamente tentadas e alcançaram a estampar assinaturas sangrentas para legalizar a sua perdição.
O advogado Antônio B. Ávila foi acusado muitas vezes de facilitar seu escritório e os papéis carimbados para estes convênios abomináveis. Se bem a venda de almas se mantinha no maior segredo, chegaram a nós os nomes e histórias de alguns condenados por própria vontade.
Não se trata – confessemos – de casos ilustres, como o do doutor Fausto, o padre Urbain Grandier e o pintor bávaro Christoph Haizmann. Mas vale a pena conhecer estes modestos contratos infernais, nem que seja para aprender a esquivar os enganos do Adversário.


O ACORDEONISTA ANSELMO GRACIANI
Os músicos que pactuam com o diabo, alcançam sempre uma dimensão genial. Não acontecia assim com Anselmo Graciani. Sua exigência frente a Lúcifer foi poder tocar como desejava e sonhava, e os anelos musicais de Graciani eram vulgares. É verdade que despachava a variação de Canário em Paris com os olhos fechados. Mas, além dos floreios acrobáticos, seu estilo era banal e relaxante, atacado por desnecessários enfeites de aniversário.
Alcançou sucesso e renome em certos ambientes. Ives Castagnino chegou a tocar em sua orquestra e aprendeu a odiá-lo.
Dizem as más línguas que Graciani pagou o dom recebido tocando eternamente no Tártaro, para suplicio – ou desfrute – dos condenados.

DIÁLOGO ENTRE ASMODEO E O RUSSO SALZMAN
Asmodeo: Sou Asmodeo, inspirador de jogadores e dono de todas as fichas do mundo. Conheço de memória todas as mãos que se repartiram na história dos baralhos. Também conheço as que se repartirão no futuro. Os dados e as roletas me obedecem. Minha cara está em todos os naipes. E possuo a cifra secreta e fatal que somarão todos os seus pôqueres quando chegar o fim da sua vida.
Salzman: Não quer jogar um baralho comigo?
Asmodeo: Não, Salzman. Venho te oferecer o triunfo perpétuo. Somente com me adorar ganharás qualquer jogo.
Salzman: Não sei se quero ganhar
Asmodeo: Imbecil! Por acaso quer perder?
Salzman: Não, também não quero perder
Asmodeo: Então quer o quê?
Salzman: Jogar. Quero jogar, mestre... joguemos uma partida.


RUBEN GARMENDIA, O BEIJA-FLOR
Não parecia mau negócio o de Garmendia. Garantiram-lhe o amor de todas as mulheres. O tormento eterno era, sem dúvidas, um preço razoável. Todos o recordam em Flores passeando com as mulheres mais belas da cidade.
Segundo contam, as moças o seguiam pela rua. Nos botecos, se aproximavam à sua mesa para se oferecerem redondamente. Muitas vezes devia se atirar dos ônibus, fugindo do ardor das passageiras. Seus amigos o abandonaram temerosos de que seduzisse suas namoradas.
Irma Joana Inês da Cruz sentenciou que o amor é como o sal: faz mal sua falta e seu excesso.
Garmendia suportou como ninguém a segunda desdita.
Suas amantes não se resignavam à sua ausência e se apareciam em sua casa chorando e atirando pedras nas janelas. Em suas últimas épocas era visto perseguido por multidões de damas sem consolo que puxavam seu paletó.
Para completar a sua desventura, se apaixonou de uma vizinha e já não precisou da paixão das outras mulheres. Soube, além disso, que a moça o amava desde sempre, desde antes do pacto.
Compreendeu então que Satã é um trapaceiro.
Sabe-se que tentou dissolver o vínculo, mas é pouco provável que tenha conseguido.
Um marido ciumento o assassinou um dia 25 de maio.

O HOMEM QUE ERA, SEM SABÊ-LO, O DIABO
Um cavalheiro da Rua Caracas resolveu negociar a sua alma. Seguindo os rituais alcançou a convocar a Astaroth, membro da nobreza infernal.
- Desejo vender a minha alma ao diabo – declarou
- Não será possível – respondeu Astaroth
- Por quê?
- Porque você é o diabo.

O PEQUENO PACTO DE MANUEL MANDEB
Não foi fácil ao diabo tentar Manuel Mandeb. Para começar, cada vez que se aparecia, o homem continuava correndo sem dar tempo a apresentações nem propostas. Um dia, disfarçado de ferroviário, conseguiu captar a confiança do polígrafo e finalmente lhe propôs o pacto de sempre.
- Na verdade eu gostaria de obter o amor de uma certa senhorita. Mas não creio que valha uma alma. É de escassa estatura.
- Posso lhe dar esse amor e também riquezas e louvores, para completar a diferença.
- Tenho uma idéia melhor – gritou Mandeb. – Conceda-me esse amor. Em troca eu cometerei quatro iniqüidades, que talvez sejam suficientes para me condenar. Discutiram durante longo tempo. Satanás aceitou sem entusiasmo o pequeno pacto, que assinou com tinta comum. As quatro iniqüidades foram estabelecidas por escrito e eram estas:
1) um latrocínio.
2) uma blasfêmia
3) uma traição
4) a quarta iniqüidade foi identificada pelo propósito do pacto. Fazer-se amar por alguém e não dar a alma em troca é, certamente, uma canalhada.
A força de generosidades e arrependimentos, Mandeb foi emparelhando o peso de seus pecados, até ficar em condições de se salvar do inferno... ajustadamente.


O HOMEM QUE PEDIA DEMAIS
Satanás: O que pedes em troca de tua alma?
Homem: Exijo riquezas, posses, louvores e distinções... e também juventude, poder, força e saúde... exijo sabedoria, gênio, prudência... e também renome, fama, gloria e boa sorte... e amores, prazeres, sensações... dará-me tudo isso?
Satanás: Não te darei nada.
Homem: Então não terás a minha alma
Satanás: A tua alma já é minha (desaparece)

Alguns relatos do bairro mostram evidência de posses diabólicas. Sempre se suspeitou dos cantores de jazz, porque tinham a possibilidade de falar um idioma que desconheciam. Jorge Allen se jactava de ter uma alma inóspita e jurava que vários demônios tinham tentado usurpá-la sem agüentar mais de meia hora.
Também se falava de íncubos e súcubos que mantinham amores com pessoas desprevenidas.
Papini sustentava a impossibilidade dos contratos infernais. O diabo – dizia – não precisa de complicadas cláusulas para capturar almas. E cabe supor que um homem tão estúpido que renuncie ao céu em troca de alguns anos de fortuna já está perdido antes de assinar nada.
A mim parece adivinhar que estamos frente a uma alegoria.
Talvez não existam as cruentas rubricas nem os rituais. Mas é possível que algumas de nossas condutas sejam – em segredo – a subscrição de um acordo. Talvez muitos de nós tenhamos vendido a nossa alma ao diabo, ao preço miserável de nos sentirmos satisfeitos de nossa integridade.
Acho que hoje – como então – os demônios andam por perto. Já não têm, para nossa desgraça, o horrível aspecto que antigamente dava certa lealdade a sua malevolência. Agora aparecem amáveis e sorridentes, quando não angelicais. É difícil, muito difícil, reconhecer o diabo, adivinhar de que modo assinamos e imaginar que classe de inferno nos espera.
Gostaria de pensar que as almas puras alcançam a perceber uns pálidos sinais. E assim como muitos pactuam sem sabê-lo, outros sem sabê-lo não pactuam.
O céu nos proteja dos demônios, de seus empregados, de suas vítimas e dos malvados que vivem convencidos de sua bondade.